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NATÉRCIA MARTINS

A última viagem

18 de Março 2022

Conhecia-os vagamente da minha antiga rua. Um dia, entrei naquela casa, não sei muito bem, qual a força que me impeliu. Foi por instinto ou talvez uma mão invisível e misteriosa me levasse lá. Dei por mim a cuidar de uma família que mal conhecia.

As primeiras vezes foi-me muito estranho.

A mãe, senhora de estatura pequena, magra e frágil, suportava, nos ombros, com força incrível, a vida de filhos tão diferentes.

Pouco a pouco fui fazendo parte da família. Qualquer coisa que não sei explicar me vai empurrando, cada vez mais ali para dentro da porta.

É como se uma voz de alguém, que não sei quem é, me segredasse ao ouvido: – Entra. És lá precisa!

Nada se faz por acaso. Eu fui entrando.

Há uns anos jurei que nunca mais abria o coração a ninguém. Tranquei-o com um cadeado, imune a qualquer tentativa de me deixar levar pela emoção. Engano meu!

Aquela mão muito branca com dedos afiados, enlaçando os meus, comoveu-me. Depois uns olhos meigos, de cachorro escorraçado, fizeram o resto. Uma voz fininha, meiga, sumida, pediu água. O copo bateu nos dentes produzindo um tilintar que me percorreu o corpo todo como se fosse um raio que me atravessou os ossos um a um.

Era um homem que parecia muito mais velho do que na realidade era. Doente. Muito doente. Enterrado na cama de lençóis muito brancos e uma colcha bordada com rosas grandes. Antiga aquela colcha!

Herdada das mãos habilidosas da mãe, pessoa que até à minha chegada cuidava dele.

E foi assim que, sem dar conta, dei por mim a entrar devagarinho naquela casa antiga, de móveis velhos que fariam as delícias de um qualquer antiquário.

E eu, sem querer, ali estava, sentada numa cadeira forrada de palhinha entrançada, junto a um doente que mal conhecia. Pensei que fosse um anjo, aliás, parecia um anjo.

A cabeça e a face muito branca confundiam-se com o branco do lençol. Delirava.

Perguntou pela fotografia.

– Que fotografia?

– A que eu guardo no bolso do casaco.

Procurei no bolso do pijama. Não havia nada. Apenas e só um pouco de cotão.

Não me lembro de alguma vez lhe ter visto um casaco vestido.

A mãe, que, entretanto, entrou no quarto disse-me:

– Não lhe ligues. Delira. Pergunta muitas vezes pela fotografia. Mas eu nunca vi nada.

Fechou os olhos, parecendo dormitar. Entrou, de novo, no torpor habitual.

Aproveitei para me levantar e dar uma vista de olhos pelo quarto. Lá ao fundo, uma velha mala. Tão velha que ao tentar levantá-la se desmanchou. Um livro, do meio de outros livros, caiu. Lá de dento saltou uma fotografia, velha, amarrotada e amarelada pelo tempo. Curvei-me e apanhei-a. Ah! Aquela era a fotografia que ele procurava. Era eu! Rapariga de vinte e tal anos, com vestido curto e farto “rabo-de-cavalo”.

O que estava ali a fazer? Como é que a fotografia foi ali parar? Tudo tão estranho, como estranho foi o novo contacto com aquela família.

Sentei-me de novo. Ele dormia agora, com um ligeiro sorriso nos lábios.

Afinal morámos na mesma rua, em tempos.

Com o rolar do tempo e a vida que, entretanto, se modificou, nunca mais nos vimos, pensava eu. Afinal, parece que não terá sido bem assim.

Chegou a noite e a hora de jantar. A fotografia ficou em cima da mesa de cabeceira. Iria esperar por momentos de lucidez para lhe fazer a pergunta que, entretanto, me “atazanava” a cabeça.

Porque estava a minha fotografia dentro do livro? Quem a tirou?

Quando abriu os olhos e meio zangada, perguntei:

– O que é isto? Que fotografia é esta?

– É tua. Não te conheces?

– Isso eu sei. Que é minha eu vi!

Uma lágrima grande rolou-lhe pela face macilenta.

– Nem imaginas. Quem tirou essa fotografia fui eu. Deixei de ir ao cinema. Deixei de comprar pequenas coisas para conseguir o dinheiro para comprar uma máquina. Segui-te dias a fio. Sem te aperceberes tirei a foto. Foi a minha companhia em noites quentes de África. Ao por do sol, olhava o céu e via-te desenhada nas nuvens coloridas.

Eras a minha companhia. Em horas mais tristes e saudosas de tudo, cheias de angústia, lá estavas tu, sorridente no quadradinho de papel. Escrevi-te cartas que nunca enviei. Fiz poemas que nunca leste. E agora és tu que vieste tratar-me. Vou fazer a última viagem da minha vida. Levo-te comigo, mais uma vez.

Fechou os olhos e partiu…


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