Numa casa acolhedora da freguesia da Lagarteira, concelho de Ansião, vive um homem que parece ter tantas vidas quantas estrelas há no céu que observa com paciência quase monástica. Aos 70 anos, José Paulo Ferreira poderia descansar na sombra de uma carreira técnica internacional que o levou de Portugal até à Rússia, de Espanha ao Brasil. Mas o seu olhar agora está voltado para cima, não em contemplação espiritual, mas científica. E, ainda assim, há algo profundamente humano, quase poético, nesse olhar treinado que aponta lentes para o infinito.
Porque José Paulo não vê apenas estrelas: fotografa-as, com um nível de precisão e entrega que não se adivinha num primeiro aperto de mão. Astrofotógrafo autodidacta, engenheiro de profissão, músico de coração e espírito inquieto, é um exemplo de como a vida pode começar (de novo) depois da reforma.
Nascido em Lisboa, José Paulo nunca pensou que um dia acabaria na serenidade rural de Ansião. A decisão de sair da capital foi, como ele diz, “por necessidade e por sanidade”. A cidade tornara-se um lugar demasiado barulhento, e não apenas no sentido literal. “Foi uma fuga da confusão. Uma tentativa de juntar o útil ao agradável: resolver questões familiares e procurar qualidade de vida”.
A mudança aconteceu em 2023, após alguns anos de adaptação à vida de reformado, que começou em 2019. O destino, em parte, escolheu-o a ele. “Encontrámos a casa na internet, já estava alugada. Mas a pessoa desistiu e ligaram-nos: ‘ainda estão interessados?’ Viemos. E cá estamos para ficar”. Não conhecia ninguém na zona. Não tinha família ali. Foi um acaso. Um acaso feliz.
Antes de Lagarteira, antes até da astrofotografia, houve uma longa vida de trabalho. E que trabalho. José Paulo Ferreira foi director técnico europeu de uma multinacional de software para reservas de viagens e companhias aéreas. Um cargo de alta responsabilidade, com ramificações que iam de Lisboa a Moscovo, passando por Madrid, Londres e Bruxelas.
Durante quase três décadas foi um dos cérebros por detrás de soluções locais e na implementação e suporte dos sistemas que ajudavam milhares de agentes de viagens a encontrar o voo certo, o preço certo, o bilhete certo. “Se entravas numa agência de viagens portuguesa e pedias um voo para Tóquio, havia 80% de probabilidade de ser o nosso sistema a tratar disso”, recorda.
Mas a parte mais revolucionária foi a implementação de redes de comunicações para as agências de viagem portuguesas, e de uma solução de “software remoto” que desenvolveu contra todas as ordens e regras da empresa. Foi quase despedido por isso. Acabou por ser promovido. “Fui teimoso. Mas tinha razão. A solução foi adoptada em vários países. No final, deram-me os parabéns”.
A paixão pelas estrelas começou cedo, alimentada pelo pai, astrónomo amador. Mas a vida, como tantas vezes acontece, obrigou a adiar sonhos. Só em 2020, já reformado, é que comprou o primeiro telescópio, ou melhor, o primeiro a “sério”.
“O primeiro, o verdadeiro, foi o meu pai que me deu quando era criança. Mas desapareceu numa mudança de casa”. Desde então, já teve quatro telescópios. Vendeu dois, ofereceu outro a um vizinho que se iniciou na astrofotografia. Ficou com “um e meio”, diz com um sorriso. Um é o principal, o outro serve de guia, e ambos fazem parte de um complexo sistema montado no quintal.
O Observatório da Lagarteira
O “observatório” de José Paulo é uma obra de engenharia doméstica. Um tripé e cabeça motorizada com perto de 40kg, assentes numa base de madeira com rodas feita por ele próprio, ligação eléctrica ao quintal, uma câmara fotográfica refrigerada capaz de atingir -35ºC em relação à temperatura ambiente, e um micro computador que controla tudo remotamente, a partir do sofá de casa. “Ficar ao frio? Sim, mas só quando tem de ser. O resto faço lá de dentro, com o iPad ou mesmo com o smartphone”.
A cada noite com céu totalmente limpo, raras, lamenta, monta o equipamento, calibra os motores, orienta-se por estrelas de referência, e fotografa objectos do espaço profundo: nebulosas, aglomerados estrelares, algumas galáxias e a Lua. Os tempos de exposição podem chegar a cinco minutos por foto, com dezenas de capturas empilhadas para criar uma única imagem. “É preciso uma paciência quase religiosa. Mas é ali, no silêncio, que tudo faz sentido”, admite.
Quando chegou, José Paulo pensou ter encontrado o paraíso da escuridão. Os mapas de poluição luminosa indicavam que Ansião era nível quatro (sendo o um o melhor). Em Lisboa estava no nove. Uma melhoria brutal, em teoria. Mas… “a minha casa é ao lado da igreja. Com holofotes. Às vezes parecia dia”, recorda.
Resolveu o problema à sua maneira: foi falar com a junta de freguesia e com os responsáveis da igreja. Pediu que desligassem apenas os candeeiros que lhe perturbavam as observações. Aceitaram. Agora, quando há festas, voltam a ligar. Mas depois desligam de novo, sem que precise pedir. Sente-se ‘profundamente’ compreendido.
Ciência, Arte e Comunidade
Fotografar o espaço é um jogo de escolhas e sacrifícios. Os telescópios não servem para tudo. José Paulo aprendeu isso sozinho, com tentativa e erro. Comprou material desadequado, investiu onde não devia, e hoje aconselha: “Não comprem telescópios sem saber realmente o que querem, ou sem pedirem ajuda a quem sabe, porque pode ser dinheiro deitado fora”.
Hoje fotografa sobretudo nebulosas. As galáxias exigem um tipo de telescópio que já não tem. E mesmo as nebulosas, nem sempre resultam. “Às vezes fotografo várias vezes o mesmo objecto, noutras nem vale a pena tentar”.
Mas há também um lado comunitário. Partilha imagens no site telescopius.com, participa em fóruns, troca ideias com iniciantes. Pensa, até, em criar um núcleo de astrofotografia em Ansião, talvez com workshops. “Não sei tudo, mas já sei muita coisa, e apesar de ter aprendido muito sozinho, a ajuda dos que sabem foi determinante, daí a minha intenção de poder ensinar quem necessita”.
Mas o céu não é o único universo de José Paulo Ferreira. Existe outro, mais terreno mas igualmente vasto: a música.
Autodidacta desde os 16 anos, começou no baixo, passou por bandas de garagem e, mais tarde, por uma banda rock com visibilidade nacional: NZZN, nos anos 80. Gravou álbuns, tocou em programas com Júlio Isidro, partilhou palco com Jafumega, Salada de Frutas, GNR,etc. Mas tudo acabou com desentendimentos internos. “Fui o último a entrar e quase o primeiro a sair. Nunca mais toquei em bandas”.
Vendeu guitarras, amplificadores, pedais. E, anos depois, começou tudo de novo. Desta vez ao piano e sintetizadores. Já teve mais de 40 ao longo do tempo. Hoje mantém o essencial. Faz música original, só para si, e partilha algumas no SoundCloud. “Nunca foi para ganhar dinheiro. O meu entretém é fazer música”.
Tem um piano com teclas Fatar, controladores MIDI, um sintetizador Roland Juno-D com sons vintage e modernos. Recriou um estúdio digital simples e software de modelação de som. Uma orquestra inteira na ponta dos dedos.
Tudo isto, astrofotografia, música, reparações, automatismos, seria impossível sem uma mente inquieta e engenhosa. A formação base é em electrónica e informática. Mas o que mais define José Paulo é a sua curiosidade teimosa. Inventa, adapta, resolve. Afinal, “não gosto de inventar o que já foi inventado, gosto de pegar no que existe e fazer melhor”.
No trabalho, isso valeu-lhe dores de cabeça e vitórias. Em casa, vale-lhe noites com o céu aberto e a alma leve. Sente-se bem em Ansião. Tem vizinhos que já chama amigos, boas relações interpessoais, e uma tranquilidade que Lisboa já não oferecia. “Só mudava se pudesse construir a casa dos meus sonhos. Num sítio mais escuro. Pequena, mas com boa ligação à internet.”
Há uma lição discreta, mas poderosa, na história de José Paulo Ferreira. Aos 70 anos, descobriu uma nova forma de viver. Não como fuga ao passado, mas como prolongamento do que sempre o moveu: o gosto por descobrir, experimentar, criar.
ANA LAURA DUARTE
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