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Mabilde Solheiro Albano: 100 anos de lucidez, leveza e lições de vida

21 de Abril 2025

Aos 100 anos, Mabilde Solheiro Albano não perdeu a vontade de aprender, nem o brilho no olhar. “Se Deus me deu esta cabeça, é porque gostava de mim”, diz com um sorriso doce mas firme. Nasceu a 4 de Abril de 1925, no lugar do Rio Simão, em Espinhal (Penela), e ali cresceu entre o barulho dos moinhos, a farinha que alimentava todos, e os ensinamentos simples de uma infância sem luxos, mas rica em afecto.

Actualmente vive no Lar Oliveira Guimarães, em pleno coração do Espinhal, desde Agosto de 2015. É um dos rostos mais antigos da casa, mas continua a ser uma presença activa e curiosa, que lê, escreve e pinta com a mesma dedicação com que, em tempos, tratou de casas, mercearias e de muita gente. Tem dois irmãos, uma irmã de 90 anos, que vive com ela no Lar, e um irmão de 84, “que ainda está bom, graças a Deus”. São laços que o tempo não desfaz.

“Eu não tenho pressa. Gosto de esperar pelo que vem”, diz com uma serenidade desarmante. “Às vezes é melhor calar do que dizer uma palavra que pode não cair bem. A gente tem que pensar antes de falar”, afirma sem rodeios.

 

Infância de farinha e bonecas de trapo

Filha de moleiros cresceu num ambiente em que pouco (ou nada) sobrava, mas também nunca faltava o essencial. “Nunca me faltou o pão. Os meus pais tinham moinhos e a minha avó também. Sempre houve farinha para a broa e sopa na mesa.” Recorda com nitidez a escola, que abriu quando tinha sete anos, e a ‘sacolinha’ que usava todos os dias, cheia de vontade de aprender. “Gostava de ler. E ainda gosto”, para Mabilde “ir para a escola era a melhor coisa que eu tinha, gostava de aprender, ia sempre contente”, recorda.

As brincadeiras eram feitas com bolas de farrapos e bonecas de pano, muitas delas costuradas pela avó ou pela tia. “Faziam-lhe os olhos com lápis e já estava. Era uma alegria.” Havia sempre pequenos retalhos aproveitados. “Às meninas do Rio Simão nunca lhe falta nada”, dizia a avó, entre risos e cuidados. Uma dessas bonecas, “tenho-a guardada, em casa do meu filho, é uma relíquia”, sorri emocionada.

A infância não teve brinquedos de loja, mas teve histórias, amor e tempo. E talvez tenha sido isso que a preparou para uma vida longa e serena. Lembra com carinho um vestido feito com um tecido vindo de África, trazido pelo pai. Era alegre, e feito com tanto esmero que “a blusa era toda em rosas e a saia era aos machinhos. Era lindo”.

 

Da casa dos patrões à mercearia

Na juventude, foi viver para Coimbra, onde trabalhou como interna na casa de uma família “muito boa, que me tratava como gente de casa, não como criada”. Cuidava do filho do casal, tratava da casa e vivia num quartinho que lhe servia de refúgio e escola de vida. Ficou lá 17 anos. “Nunca estive de mal com ninguém. Se achava que havia alguma coisa, ia perguntar: ‘mas afinal o que é que eu fiz?’”, revela enquanto explica que “sempre gostei de fazer o bem”.

Regressou ao Espinhal já com 40 anos, e foi então que casou. “Casei tarde, e tinha medo de não ter com que criar um filho: não queria ter filhos a passar mal.” Teve Miguel, o seu único filho, aos 41. E, com ele, uma nova fase da vida.

O marido, electricista, também tinha uma mercearia. Quando saía para trabalhar fora, era Mabilde Albano quem tomava conta da loja. Servia os fregueses, tomava nota dos fiados, tratava de tudo com minúcia. “Se não tenho a certeza de que pesei bem, deito mais um bocadinho: não quero nada que não seja meu”. Vendia-se meio quilo, um quarto de litro, quatro sardinhas… Se o dinheiro não chegava, anotava-se na caderneta.

Mas não era só negócio. Era também generosidade. “Se o vizinho precisava de arroz para fazer um caldo e não tinha, ajudava-se. Nunca faltava sopa a ninguém”. Ajudava quem precisava, sem esperar troco, apenas respeito.

 

Simplicidade como modo de vida

Mabilde Albano sempre viveu com pouco, mas com muito. “Nunca tivemos muito dinheiro, mas havia amor. Nunca ouvi discussões entre os meus pais. Isso era uma riqueza.” Viveu com sentido de comunidade, com respeito pelos outros e por si própria. “Não sou melhor que ninguém. E os outros também não são mais do que eu. Cada um tem o seu lugar”.

Essa humildade, aliada a um rigor silencioso, atravessa toda a sua história. “A vida é simples, somos nós que a complicamos”, diz com um brilho no olhar de quem acredita mesmo nisso. Sabe que o segredo não está em fazer muito barulho, mas em manter-se firme, honesta e com os pés no chão.

Sobre a longevidade, responde com naturalidade: “Não sei, mas às vezes penso nisso… Talvez porque nunca fiz mal a ninguém, e sempre fui de comer pouco e bem. Se acho que me faz mal, não como. Se não tenho a certeza, também não como”. Actualmente, toma apenas dois comprimidos de manhã e um à noite, “e às vezes nem esse”.

 

Broa, café e memórias

Apesar das pernas já cansadas, a cabeça está mais viva do que nunca. Lê o jornal e dedica-se à pintura: “se não faço outra coisa, vou pintar. Dá-me gosto”. Os quadros que pinta diz serem alegres, provavelmente porque absorvem a mesma ternura com que observa o mundo.

No fim do almoço, há um pequeno ritual que não dispensa: um café. “Dá-me conforto. Se um dia me esquecem do café, eu espero. Mas se ninguém vier, vou eu pedir”, assegura.

Talvez por ser coisa da infância, a broa é coisa que também não dispensa: “sabe-me a casa, e cheira-me à farinha dos moinhos”.

E há sempre espaço para um biscoito. “Tenho fama de gostar de um docinho. Mas também, quando sabia que a minha irmã ou o meu irmão gostavam mais, dava-lhes. Sempre fui de dar”.

 

Fé, paz e lucidez

Religiosa, mas sem exageros, reza o terço “quando não tenho mais nada para fazer”, e entrega a Deus a explicação para o dom da lucidez. “Ele gosta de mim, de certeza”. Não compreende o mundo de hoje. Fica incomodada com as notícias que passam na televisão: crimes, guerras, miséria. “Não deviam mostrar aquilo, fico muito triste: um pai mata o filho e mata a mãe… não entendo”. E deixa cair uma frase que resume um século de reflexão: “Se não houvesse pessoas más, também não precisávamos de armas, nem de guerras, não é?”, questiona sem precisar de ouvir uma resposta.

Lembra-se do 25 de Abril. Estava em Coimbra, na casa dos patrões: “não tínhamos televisão, e o rádio não dava nada. O senhor foi perguntar o que se passava, e depois percebemos o golpe”. Sente que, apesar da liberdade, “agora cada um quer puxar tudo para si”. Antes, diz, “éramos mais irmãos”.

Não tem telemóvel. E não sente falta. “Aquilo é só para fazer disparates”, ainda que lhe reconheça o lado útil da tecnologia. “Se for para chamar alguém numa aflição, é bom. Mas dar a uma criança de dez anos ou menos? Não acho bem.”

 

Viver com verdade

“Tenho dois netos e uma bisneta linda: é o amor”. E é com esse mesmo amor que olha para trás e agradece o caminho. “A minha vida foi dirigida com simplicidade, mas com cabeça. E com respeito”, revela.

Sabe que a vida está no fim, mas não fala disso com medo ou angústia. Fala como quem a conhece bem. Como quem a viveu toda. “Não podemos mudar o que passou. Temos é que viver o tempo que temos da melhor maneira”.

À despedida, deixa uma lição simples, dita com a calma de quem tem 100 anos de prática:
“a vida é o que fazemos dela, e se for com calma e com verdade, dura mais”, segreda. Porque, aos 100 anos, Mabilde Solheiro Albano continua a viver com alegria, gratidão e uma impressionante lucidez.

ANA LAURA DUARTE

[NOTÍCIA DA EDIÇÃO IMPRESSA]


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