À entrada da Tipografia Ética, em Condeixa, o som metálico de uma guilhotina rasga o silêncio como quem recorta o tempo. Lá dentro, entre armários carregados de tipos de chumbo e máquinas centenárias ainda em funcionamento, está Augusto Vicente, a última testemunha de uma arte em vias de extinção: a composição manual.
“Sou compositor manual. Está na minha caderneta. Em qualquer parte do país, é isso que sou”. Não diz isto com vaidade, mas com uma clareza tranquila, de quem sabe que carrega uma profissão que o tempo deixou para trás.
Começou a trabalhar aos 13 anos, hoje tem 69. “Naquele tempo, os ricos iam estudar e os pobres iam trabalhar. Eu era pobre”. Um colega precisava de alguém para aprender a arte da composição, e Augusto Vicente, que acabara de sair da escola, entrou para a tipografia. Nunca mais saiu.
Uma vida entre letras
A oficina onde hoje trabalha é um repositório de histórias e de máquinas com mais de cem anos. “A primeira máquina que trabalhei ainda está ali. Já trabalhava antes de eu nascer”, diz, entre risos.
Nos anos 80, ficou com o negócio, depois da morte do patrão. Comprou as máquinas, instalou-se por conta própria e chegou a ter quatro pessoas a trabalhar consigo. “Naquela altura, a tipografia dava. Fazíamos tudo: facturas, livros, cartões, convites de casamento, guias de transporte. Havia muito trabalho para todos os dias”.
Hoje, trabalha sozinho. “Quando há trabalho, trabalho. Quando não há, venho na mesma, para não me esquecer do caminho.” A frase é dita com graça, mas sem ironia. Augusto não tem computador, nem telemóvel. “Não preciso disso. Quem quiser, que me venha cá bater à porta”, brinca.
Um museu vivo
A Tipografia Ética funciona num edifício que já foi matadouro municipal e quartel dos Bombeiros. Pertence à Câmara Municipal de Condeixa, e Augusto Vicente está ali por concessão. “A única coisa que pedi foi que me deixassem uma área plana para as máquinas. O resto tratei eu”, recorda.
O espaço é uma cápsula do tempo. As gavetas de madeira albergam milhões de tipos, letras em diferentes tamanhos, estilos e espessuras. Augusto Vicente conhece-as todas. “Ali é o A minúsculo, ali a caixa alta. Cada letra tem o seu lugar. Isto não é só imprimir, é criar palavras com as mãos”.
Apesar de tudo, as máquinas continuam a funcionar. “Estão velhotas, como eu. Mas com óleo e cuidado ainda trabalham em plena força. Cada vez que ligo uma, tenho que a alimentar”.
Gostava de ver ali um museu, até porque “há pessoas que aqui entram só para ver as máquinas e tirar uma fotografia, noto que há interesse nas coisas de antigamente”, “mas isso só com apoio da Câmara. Eu gostava”, afirma enquanto explica que “até podia ensinar alguém, mas não há quem queira aprender: isto já não dá dinheiro, só dá trabalho”.
“Não fico triste: fico com pena”
Durante mais de três décadas, Augusto Vicente imprimiu convites de casamento aos sábados de manhã. “Cheguei a fazer dois por sábado, mais de 100 por ano. Agora, há quase 30 anos que não faço nenhum. Mandam convites pelo WhatsApp ou por e-mail. Já ninguém imprime nada”, lamenta.
A queda na procura coincidiu com a chegada dos computadores e da digitalização. “O Estado quer acabar com o papel, não quer saber disto. Mas a composição manual tem outro toque. Vê-se logo quando um cartão foi feito aqui. Tem peso, tem alma”. É mais quente.
Hoje, a maioria dos clientes são da zona e pedem pequenas encomendas: 100 cartões, um livro de facturas… “Já não compensa, mas eu faço. Aqui o que custa é compor. Imprimir é o mais fácil. Uma hora para montar um cartão, meia hora para imprimir”.
Sobre o fim da arte, Augusto Vicente é pragmático: “Ninguém é eterno e esta arte vai morrer. Não fico triste: fico só com pena.”
A arte de resistir
Ao caminhar pela oficina, cada máquina conta uma história. Uma, a mais antiga, é usada só para gravar fitas de tecido. “Tem que bater duas vezes: ‘tum-tum’. É como se marcasse o tempo.” Noutra, mais moderna, imprimiu milhares de livros de facturas. “Essa fazia 3.000 por hora. Era uma senhora máquina, topo de gama na altura: é uma Heidelberg, veio da Alemanha”.
Augusto sabe o nome de todas e os detalhes de cada uma. Sabe quando as comprou, quanto custaram e até que tinta funcionava melhor em cada uma. “As tintas agora são mais fracas. Mas eu ainda tenho aqui a dourada dos convites de casamento. Só dava até ao meio-dia. Depois secava.”
Gosta de ler o jornal em papel. Compra à segunda-feira. “Porque ao fim-de-semana há bola. E porque gosto de folhear. No computador não é a mesma coisa.” Paga em cheque ou dinheiro. “Dinheiro de plástico não uso. Isso não é real”.
Uma oficina para ver e ouvir
Na Tipografia Ética, tudo é feito à mão. Desde a composição ao corte, da guilhotina ao picote. “Cada livro é um livro, e cada cartão é produzido um a um”. Os olhos, já cansados, ainda percorrem com precisão as gavetas cheias de letras. “Isto exige concentração. Mas depois de 50 anos, a mão já vai sozinha”.
Gostava que mais gente visitasse o espaço. “Os turistas, às vezes, passam aqui e ficam encantados. Dizem que nunca viram nada assim. E eu explico, mostro como se faz. As crianças então adoram”. E não há como não adorar. É um naco de história com cheiro a papel.
Um tempo que já não volta
Não tem internet. Não usa facturas electrónicas. Não envia PDFs. “Se um dia me obrigarem a fazer no computador, acaba. Acaba mesmo, porque eu não mexo nisso”.
Na parede, um calendário antigo. No armário, restos de convites de casamento da Sandra e do Jorge, de 2004. “Foi dos últimos, e olha como brilha a tinta dourada”, mostra entusiasmado.
O que não falta, ali, é memória. E dignidade. Augusto Vicente é um homem que imprime as palavras com as mãos, e a história com o coração.
“Não quero muita coisa. Só queria que isto não morresse comigo. Mas parece que vai.”
Numa época em que tudo se mede em velocidade, Augusto Vicente trabalha com o tempo ao ritmo das mãos. “Isto não é uma fábrica. Aqui as coisas fazem-se com calma. A pressa é inimiga da perfeição.” Não há relógio. Há décadas que o compasso é ditado pelas letras, pelo barulho da prensa, pelo cheiro da tinta.
O que mais o fascina, confessa, é o processo da composição. “É ao contrário. Temos de montar tudo ao contrário, letra a letra. Para depois, na impressão, sair como deve ser.” Pega num pequeno tipo, mostra o A minúsculo. “Cada letra é uma peça. E cada peça tem o seu sítio. Isto é uma dança.”
Mesmo sem formação superior, a precisão e o saber acumulado transformam-no num verdadeiro artesão da linguagem. “Eu não estudei muito, mas aprendi a ler os erros antes deles saírem”. Sorri, orgulhoso, como quem sabe que já salvou muitos nomes mal escritos e muitos números de contribuinte trocados.
O fim da linha
As histórias de trabalho são muitas. O tempo das grandes encomendas, dos livros de facturas aos molhos, dos convites dourados aos fins-de-semana fica na memória. “Eu vinha para aqui às oito da manhã e saía às dez da noite. Todos os dias. Sempre com trabalho.”
Agora, esse tempo já não volta. As máquinas continuam a funcionar, mas mais por paixão do que por necessidade. “Já só imprimo de vez em quando. Há meses em que entra muito pouco (ou nenhum) trabalho, mas não me custa vir. Estar aqui é estar vivo”.
Para o futuro, guarda uma esperança tímida. “Talvez um dia alguém queira fazer disto um espeço museológico. Eu podia ajudar, explicar como tudo funciona. Mas para já, fico aqui, à espera.”
Ao contrário do que se possa pensar, o último compositor manual de Condeixa, não é avesso à mudança. Reconhece as vantagens do digital, da rapidez, da eficiência. “Mas o que se ganha em velocidade, perde-se em toque humano.” E é esse toque, feito de tempo e de cuidado, que gostava de deixar como legado.
Não há lamento na voz de Augusto Vicente. Há apenas uma serenidade que vem de quem fez tudo com as próprias mãos — e soube, mesmo sem saber, que estava a construir memória.
ANA LAURA DUARTE
[NOTÍCIA DA EDIÇÃO IMPRESSA]
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