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Paulo Moreiras: O escritor que colecciona vidas, palavras e sabores

24 de Março 2025

Paulo Moreiras gosta de acordar cedo. Não porque o obriguem, mas porque é assim que as histórias lhe surgem com maior clareza. “Escrevo de manhã. Nunca à noite. O meu cérebro precisa de tempo para processar as ideias”, explica o escritor. Faz chá, “geralmente de menta, porque me estimula o pensamento”, e senta-se à secretária. “O chá ajuda-me a manter o foco. Se me apercebo de que as palavras começam a repetir-se, levanto-me, faço outra infusão e volto. A pausa faz parte do processo”.

Nascido em 1969, em Lourenço Marques (actual Maputo), Moçambique, veio para Portugal ainda criança, em 1974, com o sabor da incerteza na boca. “Foi logo a seguir ao 25 de Abril. Houve um momento em que a minha família percebeu que tinha de partir. Primeiro ficámos no Douro, em casa da minha avó, numa aldeia entre Cinfães e Resende, e foi ali que comecei a perceber o peso das histórias”, recorda.

A oralidade, os contos, as lendas sussurradas à lareira, tudo isso construiu um imaginário que, anos mais tarde, tomaria forma nos seus livros. “A minha avó contava-me histórias de lobisomens e bruxas. Falava de superstições, de adivinhas, de modos de ver o mundo que não cabiam nos livros da escola. Fui absorvendo tudo isso, e mesmo quando, mais velho, tentei virar costas ao que era rural, percebi que toda a minha essência é a ruralidade “.

Da banda desenhada à literatura

A escrita, no entanto, não foi um amor à primeira vista. Durante anos, quis desenhar. “O Vasco Granja foi uma referência. Os desenhos animados, a banda desenhada, tudo isso me fascinava. Mas depois percebi que, para desenhar, precisava de histórias. E então comecei a escrevê-las”. Foi um processo natural, mas não imediato. “Nunca tive a ambição de ser escritor. Simplesmente, quando olho para trás, percebo que sempre caminhei nessa direcção”.

Quando chegou a Lisboa, na adolescência, trocou o Douro pelos ritmos da cidade e os livros foram-se infiltrando na sua vida. “Na minha casa não havia uma grande tradição de leitura, mas tive duas tias que me ofereceram livros. E eu, sem perceber bem porquê, gostava deles. Construí a minha própria estante para os organizar. Poderia não os ler logo, mas sabia que um dia o faria”.

O percurso foi sinuoso: trabalha como copywriter, fez banda desenhada, experimentou a poesia. Mas a literatura puxava-o para um outro patamar. Aos 20 anos, teve a ideia do seu primeiro romance, mas percebeu que ainda não tinha bagagem para o escrever. “Disse a mim mesmo: preciso de viver mais, ler mais, aprender mais. Não posso lançar-me nisto sem preparação”. Em 1998, tomou uma decisão radical: mudou-se para o concelho de Pombal, e decidiu dedicar-se à escrita. Primeiro em Meirinhas, depois em Vermoil, onde reside desde 2010.

A literatura como destino

“Foi uma história de amor”, diz, a sorrir. “Conheci a minha mulher em Lisboa, e os pais dela eram de Meirinhas. Quando casámos e começámos a pensar em ter filhos, percebi que não queria criá-los numa cidade. Queria que tivessem liberdade, que pudessem viver o que eu vivi no Douro, durante a minha infância”.

A mudança não foi apenas geográfica, foi também uma afirmação de compromisso com a literatura. Nesse mesmo ano, recebeu uma bolsa de criação literária e publicou ‘A Demanda de D. Fuas Bragatela’, corria o ano de 2002. “Foi um romance que surgiu como um manifesto. Quis provar que a novela picaresca também tinha espaço na literatura portuguesa. E a crítica notou isso”.

Vieram depois ‘Os Dias de Saturno’ (2009), ‘O Ouro dos Corcundas’ (2011) e ‘A Vida Airada de Dom Perdigote’ (2023), este último finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. “Gosto de histórias com humor, com aventura, com personagens que fogem ao óbvio. Há sempre uma base histórica sólida, mas também um jogo de invenção e irreverência”.

O livro que ganhou nova vida

O ‘Ouro dos Corcundas’ é um dos curiosos casos de ressurreição literária. Publicado originalmente em 2011, o livro até podia parecer condenado ao esquecimento até que um grupo de leitores de Chão de Couce (Ansião) o redescobriu. “De repente, começaram a contactar-me, a falar sobre o livro e a pedir-me para autografar exemplares. Isso gerou um novo movimento à volta da obra e, passados mais de dez anos, esgotou completamente”, conta Paulo Moreiras. O entusiasmo inesperado levou à sua reedição, uma oportunidade que o autor não quis desperdiçar. “Quando me falaram da reedição, pedi para rever o texto. Fiz alguns ajustes, corrigi pequenas imprecisões e voltei a mergulhar naquela história como se fosse a primeira vez”.

A ligação de Paulo Moreiras com Chão de Couce vai além do entusiasmo dos leitores. A história de ‘O Ouro dos Corcundas’ passa-se precisamente nesta localidade, e o escritor visitou a região várias vezes durante o processo de escrita. “Precisava de absorver os detalhes, sentir os espaços, ver o que as personagens veriam. Queria que o livro tivesse essa autenticidade”, explica. Agora, a 6 de Abril, o romance será apresentado oficialmente na terra que o inspirou, num evento que celebra não só a obra, mas também a forma como os livros conseguem voltar à vida através dos leitores. “Isto prova uma coisa maravilhosa: os livros ganham novas vidas graças aos leitores. E isso é o mais extraordinário de tudo”, dá nota.

O processo criativo e a disciplina

Para o escritor, escrever não é apenas um exercício de talento, mas de organização e método. “Não há inspiração que sobreviva sem disciplina. Levanto-me cedo, escrevo de forma rigorosa e, à tarde, dedico-me à revisão ou à pesquisa”. Durante anos, escreveu ao som de heavy metal. “Iron Maiden, Faith No More… essa energia ajudava-me a concentrar-me”, recorda. Mas, com ‘A Vida Airada de Dom Perdigote’, tudo mudou. “Foi escrito em silêncio absoluto. E percebi que, assim, dominava melhor a informação, ouvia melhor a minha própria voz narrativa”.

Há, no entanto, um momento difícil: o final. “Quando termino um romance, fico vazio. Passei meses com aquelas personagens na cabeça e, de repente, elas desaparecem. É um luto”. Por isso, antes de começar um novo livro, precisa de tempo. “Preciso de me encher outra vez. De viver, de ler, de observar”.

A gastronomia como identidade

A gastronomia não é um acaso na sua vida. “A comida sempre foi um veículo de memória para mim. O cheiro dos marmelos que a minha avó cozinhava, a forma como ela mexia a panela… tudo isso ficou registado”.

Os seus livros sobre gastronomia, como ‘Elogio da Ginja’ (2006) e ‘Pão & Vinho’ (2014), reflectem esse fascínio. “Cozinhar é um acto de partilha. Quando convido alguém para jantar, penso em tudo: na comida, no vinho, no tempo que dedico ao prato. Se alguém come à pressa, sem saborear, dificilmente volta cá a casa”, brinca.

Família, perdas e projectos

A família é um pilar essencial na sua vida. “O maior desafio da minha vida? Ter-me casado”, afirma, sem hesitação. “É extraordinário decidir partilhar a vida com alguém”, segreda. Mas a sua trajectória também tem sido marcada pela perda. “O meu pai morreu uma semana antes de eu publicar o meu primeiro romance. A minha mãe, um mês antes do último. Falávamos todos os dias sobre o que eu estava a escrever. Não a ter cá para ver o livro pronto foi muito duro”.

Apesar disso, olha para o futuro com entusiasmo. “Tenho um romance sobre piratas na cabeça há anos. Ainda não encontrei a voz certa, mas sei que esse livro vai existir”. E a literatura, essa, continua a ser a sua maior viagem. “Sei que este é o registo onde melhor conto as minhas histórias. E, pelos vistos, os meus leitores também concordam”.

Se há algo que Paulo Moreiras já aprendeu, é que um livro nunca morre no dia em que é publicado. Tal como ‘O Ouro dos Corcundas’, há histórias que encontram sempre uma nova forma de renascer.

Foto: Rita Gaspar Moreiras

ANA LAURA DUARTE

[NOTÍCIA DA EDIÇÃO IMPRESSA]


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