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Paula Oliveira Guimarães: entre a Casa, as causas e a liberdade

10 de Março 2025

Jurista, escritora, mulher de causas, apaixonada pela justiça social, pela cultura e pela liberdade, faz da sua vida um caminho de compromisso e entrega. Aos 59 anos, Paula Oliveira Guimarães sente-se no auge da sua realização pessoal: “não trocaria a idade que tenho por nada. Quanto mais envelhecemos, mais livres nos tornamos”, afirma com um sorriso.

Filha e neta única, cresceu entre dois mundos: a vida formal e estruturada da capital lisboeta e a liberdade descomprometida das temporadas no Espinhal (Penela). “Os meus amigos de infância eram as crianças daqui, e algumas ainda se mantêm. Era um ambiente diferente, onde a imaginação e a liberdade faziam parte do dia-a-dia”, recorda.

A liberdade é, aliás, o fio condutor da sua história. Desde a escolha do Direito, que abraçou “mais por tradição familiar do que por vocação”, até à decisão de se dedicar à área social, sempre procurou “fazer do conhecimento um instrumento de transformação”. Mas foi com a abertura da sua casa de família, a Casa Família Oliveira Guimarães, à comunidade e no compromisso com a cultura que encontrou uma forma de devolver ao mundo o que recebeu.

A ‘Casa do Castelo’, como também é conhecida, está há quase três séculos na sua família. Herdou-a da família do pai, mas em vez de a transformar num bem privado ou vendê-la para aliviar encargos, tomou, em conjunto com o marido, uma decisão invulgar: abriu as portas à comunidade, devolvendo à terra um património que sempre a definiu. “Há pessoas que vivem e viveram no Espinhal a vida toda e nunca tinham entrado nesta casa. Outras que trabalharam aqui e nunca passaram da cozinha. Isso disse-me muito sobre a responsabilidade que tínhamos perante este lugar”, assume.

Mais do que preservar o solar oitocentista, Paula Oliveira Guimarães quis preservar a sua alma. Fez da casa um centro de cultura, um espaço de partilha, um ponto de encontro entre gerações, antecipando o efeito da disposição testamentária que coloca nas mãos da freguesia do Espinhal a propriedade da Casa Família Oliveira Guimarães e respectivo acervo. Mas essa é apenas uma das suas ‘batalhas’.

 

Direito e causas sociais

O destino parecia traçado desde cedo: Paula Oliveira Guimarães nasceu numa família de juristas, sendo a sexta geração a seguir esse caminho. Engane-se quem pensa que esta foi uma escolha natural. “Primeiro quis ir para Serviço Social, depois para Jornalismo, depois para Literatura Medieval. Mas a pressão familiar foi grande. Numa noite em São Martinho do Porto, decidi inscrever-me em Direito”, conta.

Aceitou a herança profissional, mas moldou-a à sua maneira. Se o curso lhe deu a base para uma carreira estável, foi na sua vertente social que encontrou o verdadeiro propósito. O seu percurso passou por várias instituições, sempre ligada a políticas públicas de inclusão, em especial no campo do envelhecimento e da protecção dos mais vulneráveis.

“O envelhecimento sempre me fascinou. É uma fase que devemos celebrar, e não temer. Trabalhei sempre nesta área, desde a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa até à Fundação Montepio. Defendi os cuidadores informais, os direitos das pessoas com perda cognitiva, o regime do maior acompanhado. O envelhecimento não é um problema, é uma conquista. Mas a sociedade insiste em não se preparar para ele”, lamenta.

“Portugal é um dos países mais envelhecidos do mundo”, e Paula Oliveira Guimarães não tem ilusões sobre as dificuldades que isso representa. “Não temos respostas sociais suficientes para as necessidades que aí vêm. Somos o quarto país mais envelhecido do mundo, e ainda não criámos uma estratégia consistente para lidar com isso. Precisamos de soluções de longo prazo, que vão além dos ciclos políticos”, reflecte.

Para a jurista, o problema do envelhecimento não está na idade, mas na falta de suporte social. “Olhamos para os idosos apenas quando se tornam frágeis, quando a doença, a pobreza ou a solidão se instalam. Mas a maior parte das pessoas envelhece com autonomia, com conhecimento e com vontade de continuar a contribuir. Quem manda no mundo? Os velhos. Quem lidera as grandes empresas, os governos, os tribunais? Os velhos. A idade não é a questão. O problema é a vulnerabilidade, e nisso, falhamos todos os dias.”

 

Visão a longo prazo

Outra das causas que marcaram a sua vida foi a reinserção social de jovens. O seu trabalho no Instituto de Reinserção Social deu-lhe uma visão directa sobre as dificuldades dos menores institucionalizados e sobre a falta de uma estratégia integrada para os resgatar de um ciclo de exclusão.

“Os jovens que chegam aos centros educativos são o reflexo de uma sociedade que falhou em vários níveis: famílias desestruturadas, escolas incapazes de os reter, bairros marginalizados. Tentamos recuperá-los, mas fazemos sempre tudo a meio. Portugal trabalha com agendas curtas, ao sabor dos governos. Falta-nos continuidade.”

A frustração com a falta de continuidade levou-a a afastar-se das grandes organizações. “Trabalhei 12 horas por dia durante anos, aos fins-de-semana e feriados, tudo. Fui uma workaholic [trabalhadora compulsiva]. Mas um dia percebi que já tinha dado para esse peditório. Hoje sou consultora, freelancer. Trabalho no que quero, com quem quero”. Liberdade, novamente.

 

Casa para a comunidade

O projecto cultural que nasceu na sua casa é o reflexo de tudo em que acredita. “Esta casa só chegou até aqui graças à comunidade. Mantê-la apenas para nós seria egoísmo”.

Em 2019, abriu as portas e transformou a propriedade, de 39 divisões, num centro de dinamização cultural. “Não queria que se tornasse num hotel, nem num espaço privado. Aqui só há eventos culturais, e tudo gratuito. A cultura tem de ser acessível a todos”, garante.

A manutenção da casa exigiu investimentos, incluindo um empréstimo ao Turismo de Portugal, que ainda está a pagar. “Podíamos ter escolhido cobrar bilhetes e amortizar parte do empréstimo, mas isso iria afastar as pessoas. E a nossa missão é precisamente o contrário”.

A ligação à comunidade é tão forte que hoje os habitantes do Espinhal já se apropriaram do espaço. “As pessoas dizem ‘fomos lá a casa’ ou ‘tive uma ideia para a casa’. Era exactamente isso que queríamos: que sentissem que este lugar também é delas”.

 

Humor como resistência

Se há algo que define Paula Oliveira Guimarães, além do seu compromisso com a justiça social e a cultura, é o seu sentido de humor. Para a jurista, o humor não é apenas uma ferramenta de leveza, mas uma verdadeira arma de resistência.

“O humor salva-nos. Não há circunstância na vida onde não caiba uma gargalhada, nem mesmo na morte.” Foi com essa filosofia que ajudou a consolidar a Bienal de Humor Luíz d’ Oliveira Guimarães, um evento que já conta com nove edições e que se tornou uma das mais relevantes bienais do género no mundo.

“O humor não é apenas entretenimento. É reflexão, é crítica, é uma forma de pensamento livre. E é isso que queremos trazer para Penela.” Apesar do reconhecimento internacional, lamenta que o evento ainda não tenha a projecção nacional que merece.

“Portugal tem uma relação estranha com o humor, ainda não o leva suficientemente a sério. Mas o meu sonho era que Penela fosse conhecida como a capital do humor em Portugal”, revela.

 

A estreia no Teatro da Trindade

O amor pela cultura reflecte-se também na escrita. Com vários livros publicados e premiados, Paula Oliveira Guimarães vê agora outro dos seus maiores sonhos ganhar vida: a sua primeira peça de teatro estreia-se no Teatro da Trindade, com encenação de Diogo Infante.

“Escrevi a peça a pensar nele. Não o conhecia, mas imprimi o texto e deixei-o no balcão do teatro, com um cartão. Uma semana depois, recebi uma chamada a dizer que queria encená-la.”

A peça estreia em Maio, protagonizada por Sérgio Praia. “É um orgulho imenso e um nervosismo ainda maior. O texto é pesado: não faço ideia de como o público vai reagir.”

A escrita, no entanto, não é apenas um exercício artístico, mas uma forma de resistência. “Vivemos num tempo perigoso, à beira de uma nova Idade Média em termos de valores. A única coisa que posso fazer é escrever sobre o que acredito. A literatura é a minha forma de luta.”

No final da conversa, a pergunta impõe-se: como gostaria de ser recordada? Paula Guimarães não hesita. “Gostava de ser lembrada como uma pessoa livre e feliz.”

É essa a essência do seu percurso. A liberdade de escolher, de pensar, de agir. A liberdade de abrir portas, de desafiar conceitos, de rir perante a adversidade. A liberdade de escrever sobre o que importa. E a liberdade de saber que, quando partir, deixa um legado que pertence a todos.

 

ANA LAURA DUARTE

[NOTÍCIA DA EDIÇÃO IMPRESSA]


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