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NATÉRCIA MARTINS

Velha Carcaça

7 de Fevereiro 2025

Chamam-lhe Velha Carcaça. Há, ainda muita gente que não sabe o porquê daquela alcunha. Alcunha do qual nem se importava muito. Aliás não se importava com nada. A vida ia-lhe passando ao lado. Os dias eram sempre iguais.

João era homem de poucas palavras, mas muitos pensamentos.

Quando passamos no carreiro de terra batida que se encontra entre o ribeiro e a sua casa, lá está sentado num banco feito de um tronco que cortou de uma velha laranjeira. Colocou à frente de casa e como não tem muito que fazer senta-se ali com as mãos colocadas entre as faces pensando na vida que teve. O cão deitado a seus pés é a sua companhia. Aliás: um amigo!

Quantas vezes conversa com o seu Boby, cão que tem o mesmo nome de todos os cães.

Fala de si e de quem se lembra na altura. Boby, quando acordado, olha para ele com os olhos muito abertos, castanhos, brilhantes a entender o que o dono lhe conta. Entende? Não sei! Talvez!

O Boby encosta o focinho à perna do dono a ouvir.

Muitas vezes João conta-lhe que quando novo era um belo rapaz e que vivia em casa dos pais onde não faltava nada. Rapaz novo com fato de bom corte e uma bela rapariga a seu lado. A sua mulher. Mulher, também, de gente de posses como se dizia na época. Foi marinheiro. Viu amigos e colegas a naufragar nas águas gélidas do mar. Mas, mesmo marinheiro tinha medo do mar. O mar é muito grande. Parece que não tem fim nem fundo.

Um dia de Verão, derrubado na amurada do barco pensou que a vida não lhe tinha dado a oportunidade que queria: ter filhos. É certo que tinha uma mulher linda que o esperava sempre que aportava a terra. E os filhos que não chegavam.

Um dia teve a “tal” notícia. Elisa estava grávida. João e a mulher prepararam tudo. Cada detalhe, a música que tocaria na sala de partos, o pequeno gorro que ele lhe colocaria na cabeça. O dia do nascimento chegou.

Recordou também, os sorrisos simpáticos das enfermeiras, a barriga ainda enorme de Elisa.

A menina nasceu. Não de parto normal, mas mesmo assim muito complicado. As enfermeiras e o médico entreolharam-se, mas não disseram nada.

João saiu da sala. A sua menina nasceu. Agora era pai e não deixaria que nada lhe acontecesse.

João, sentado no seu banco feito com o tronco já bem velho da velha laranjeira, continuou a olhar para dentro de si. O pensamento não pára. Não para nunca. Reviu o berço da menina no quartinho cor-de-rosa. Os bonecos de peluche e as mãozinhas pequeninas a brincar com eles. Tantos sonhos! Tinha escolhido os nomes dos rapazes e raparigas. Seria uma casa cheia de risos, choros e noites mal dormidas.

João estremeceu no meio da sua solidão porque o cão latiu. Levantou a cabeça e olhou para dentro de casa. Não viu ninguém. Morava sozinho. Relembrou o dia em que os seus sonhos desmoronaram. Os médicos e as enfermeiras não se enganaram no dia do nascimento da menina, embora tivessem ficado calados.

O veredicto: trissomia 21. Foi como se o mundo tivesse caído. Aliás tudo se desmoronou. Sem sonhos. Sem vida. Nada!

Mais uma vez a vida lhe trocou as voltas. A sua menina não sobreviveu. Ele pensou que a filha mesmo doente seria cuidada e amada. Mas não!

João, foi ele, que com as suas mãos cheias de raiva transportou o caixão pequeno e branco da sua filha. Chorou. Chorou o que tinha que chorar.

Elisa foi embora. Nunca mais se soube dela, também cheia de raiva de si própria.

Passados alguns anos, não sabia ao certo quantos, passa os dias sentado no tronco da laranjeira. Chamam-lhe a Velha Carcaça. É isso mesmo: uma velha carcaça.


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