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Soure: Maria de Fátima Carvalho, ou o fascínio pela ciência que se tornou paixão para a vida

24 de Fevereiro 2025

Nascida em Cotas, uma aldeia ‘perdida’ nos montes do concelho de Soure, cresceu longe do bulício das grandes cidades, num tempo em que a luz eléctrica ainda não chegava a todos os lares. Hoje, aos 63 anos, Maria de Fátima Carvalho lidera o Instituto Politécnico de Beja (IPBeja), uma instituição que ajudou a modernizar e projectar para o futuro.

No final dos anos 60 e início dos anos 70 do século passado, quando a noite caía sobre Cotas, na União das Freguesias de Degracias e Pombalinho, as crianças estudavam sob o brilho amarelado das candeias. Crescida num tempo em que não havia electricidade ou água canalizada em sua casa, recorda uma infância simples, mas rica em experiências. “Fiz a quarta classe à luz da candeia porque não tínhamos luz eléctrica. Mas isso não nos impediu de aprender e de sonhar”, conta.

Infância e curiosidade

O tempo era outro, mais simples, mas nem por isso menos enriquecedor. Brincava-se na rua sem receios, imaginavam-se aventuras sem a necessidade de um ecrã a iluminar os rostos. “A liberdade que tivemos na infância não tem preço. Hoje as crianças vivem rodeadas de tecnologia mas sem a espontaneidade e criatividade que nos era natural”, reflecte. “Podia sair e brincar livremente sem preocupações”, os pais “sabiam que estávamos em casa de uma vizinha ou a brincar com outros meninos”.

O interesse pelo estudo foi uma constante, incentivada pelos pais, que viam na educação um caminho para um futuro diferente. Ainda que os recursos fossem escassos, a sede de aprender era imensa. “Nunca me senti limitada. Pelo contrário, o facto de não ter tudo à mão fazia-me querer descobrir mais”, explica.

E se o ensino básico foi feito na pequena aldeia, seguiu para Soure, onde finalizou o ensino secundário. Ou melhor, onde teve o primeiro contacto com a disciplina que marcaria a sua vida: a Química. “Sempre fui curiosa, e fiquei fascinada pela forma como a ciência conseguia explicar o mundo ao nosso redor”, conta.

Daí até à Universidade de Coimbra foi um passo natural, ainda que desafiante. A adaptação a uma cidade maior e ao ritmo universitário exigiu um esforço redobrado. “Saí de um meio pequeno e fui ‘atirada’ para um mundo muito diferente. Foi difícil, mas percebi que estava onde devia estar”.

Em Coimbra, aprofundou a paixão pela ciência, dedicando-se ao estudo da composição da matéria e da transformação das substâncias. O desejo de compreender os fenómenos químicos e aplicá-los à realidade concreta tornou-se o seu propósito.

Depois de concluir a licenciatura, iniciou a sua carreira como professora no ensino secundário. “Era um trabalho nobre, mas sentia que podia ir mais além, que podia contribuir de forma diferente.”

O destino reservava-lhe uma oportunidade inesperada. E foi “através de uma amiga que soube da abertura de um concurso para leccionar no Instituto Politécnico de Beja: na verdade candidatei-me sem grandes expectativas, mas acabei por ficar”. Estávamos em 1993. Nunca mais saiu.

Ciência e inovação

A sala de aula não lhe era suficiente para saciar a sede de conhecimento. O próximo passo estava na investigação, com especial enfoque na área ambiental. O tratamento e reutilização de águas residuais da indústria queijeira tornou-se um dos seus principais projectos. “O meu objectivo sempre foi transformar problemas em oportunidades. E foi isso que fizemos”, afirma.

“A produção de queijo é um processo que, além de gerar um produto de grande valor gastronómico, esconde um problema ambiental sério: a quantidade de água residual altamente poluída que resulta da sua produção”, esclarece.

E para que se tenha uma noção mais real explica que “para cada litro de leite que se transforma em queijo, são desperdiçados entre cinco a sete litros de água residual, carregada de matéria orgânica difícil de tratar”.

Para Maria de Fátima Carvalho, este desperdício representa “um desafio gigantesco, não apenas em Portugal, mas a nível mundial: é um problema local, regional, nacional e global. A indústria queijeira tradicional, que encontramos tanto no Alentejo como nesta minha região de origem, enfrenta a mesma dificuldade”, ou seja “onde há produção de queijo, há este problema”, destaca.

Atenta às questões ambientais, liderou um projecto de investigação no Instituto Politécnico de Beja, que procurava dar uma resposta eficaz e sustentável a esta questão, desenvolvendo uma tecnologia inovadora para o tratamento e reutilização dessas águas.

“O objectivo nunca foi apenas tratar os resíduos, mas sim transformar um problema numa mais-valia. Através desse projecto de investigação, conseguimos criar um processo acessível, adaptado à realidade das pequenas explorações, que permite a recuperação da água para outros usos e, ao mesmo tempo, reduz o impacto ambiental”, sublinha.

O sucesso da investigação resultou não só em patentes, mas também em prémios e reconhecimento internacional, com diversas instituições a procurarem implementar soluções semelhantes. “Recebemos contactos da Comissão Europeia, de municípios portugueses e de instituições na Índia e até nos Andes, interessados em saber como podiam adaptar esta tecnologia às suas necessidades”, conta, orgulhosa do impacto do seu trabalho.

Desafios e liderança

Com um currículo repleto de artigos científicos de valor e de projectos carregados de reconhecimento, em 2021 assumiu a presidência do Instituto Politécnico de Beja, um cargo que encarou, e encara, como uma forma de retribuir à instituição que tanto lhe deu. “Atingi o topo da carreira académica e senti que tinha chegado o momento de dar algo em troca”.

“Os desafios de liderar uma instituição no interior do país são muitos”, desde a captação de alunos até a modernização das infra-estruturas. “Temos que ser estratégicos. Precisamos de criar factores de atracção para que os estudantes escolham o IPBeja”, defende.

Uma das suas grandes apostas de Maria de Fátima Carvalho prende-se com a construção de uma nova residência estudantil, um projecto inovador, com 500 quartos, financiado pelo PRR. “Este é um projecto que pode transformar a forma como atraímos alunos e garantimos a sustentabilidade do instituto”, revela, enquanto explica tratar-se “da maior obra do género feita até agora em Portugal”.

Apesar de viver e trabalhar em Beja, no coração do Alentejo, as suas raízes continuam bem ancoradas em Cotas. “Tenho ali a casa de família e sempre que posso volto. É onde recarrego energias”, segreda.

Casada e mãe de dois filhos, partilha a vida com um marido igualmente apaixonado pela Química. “Curiosamente, em vez de sair de Beja, trouxe a minha família para cá. E nunca me arrependi.”

Além da ciência, há uma outra paixão que lhe ocupa os dias: a natureza. Dedica-se à observação e catalogação de flores silvestres, partilhando as suas descobertas num grupo especializado. “É um hobby que me relaxa e me liga à terra. A ciência e a natureza andam sempre de mãos dadas.”

Com o fim do mandato à vista, a pergunta impõe-se: continuará à frente do IPBeja? “Estou disponível, mas essa decisão cabe à instituição. Se acharem que continuo a fazer a diferença, cá estarei”, afirma convicta.

E quanto a um eventual regresso definitivo a Cotas? “O futuro é sempre uma incógnita, mas a casa lá está, e parte da minha família também. Se um dia voltar, será um regresso às origens, ao lugar onde tudo começou, ao sítio onde recarrego energias e onde me conecto comigo mesma”.

Do brilho da candeia ao esplendor da ciência, Maria de Fátima Carvalho construiu uma história notável. Mais do que professora, investigadora ou gestora, é uma mulher que nunca deixou de acreditar no poder do conhecimento para transformar vidas. E quer continuar, incansável, a iluminar o caminho das gerações futuras.

ANA LAURA DUARTE


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