Ricardo Silva cresceu em Pombal. Por ali, as ruas eram palcos para as brincadeiras da infância, mas era em casa que a verdadeira magia acontecia: desde cedo que a música lhe enchia os dias. O pai, um apaixonado por música, conciliava a sua profissão principal com um hobby “semiprofissional”: a guitarra portuguesa e o saxofone. “Lá em casa, a música era como respirar,” recorda a sorrir. “Nunca houve imposição, portanto posso afirmar que tudo aconteceu de forma natural. Os instrumentos estavam lá e o interesse veio por si só”.
A infância foi uma simbiose entre a música e as brincadeiras. Não havia pressa nem obrigações. Ricardo e o irmão mais velho, João Silva, ainda crianças, receberam a primeira viola pelas mãos do pai: “lembro-me bem, era uma pequena guitarra clássica adaptada para mãos infantis”. Enquanto o irmão “mostrou uma aptidão quase imediata”, Ricardo só começou mais tarde, mas com a mesma paixão. Aos sete anos já dedilhava os primeiros acordes, guiado pelo pai, “que era mais do que um mestre da música: era um mestre de vida”.
O despertar da paixão
A adolescência trouxe novas descobertas. Aos 14 anos, Ricardo e o irmão começaram a acompanhar o pai em noites de fado, “o que também acabou por tornar as coisas mais sérias”. O trio familiar tornava cada actuação especial, com o fado como pano de fundo e as guitarras como protagonistas. “Comecei a perceber que a música tinha algo de especial, que me completava”, relembra. “Mas, na altura, ainda não sabia que seria a minha vida.” Foi apenas na transição do secundário para a faculdade que decidiu que a música era o seu futuro.
“Quando terminei o 12.º ano, entrei no curso de Educação Musical, na Escola Superior de Educação de Coimbra,” conta. “Na época, não existia o curso de guitarra portuguesa, mas eu sabia que queria seguir esse caminho.” Terminou a licenciatura e o mestrado, sempre com a guitarra no coração. Quando, em 2008, surgiu a primeira licenciatura em Guitarra Portuguesa, em Castelo Branco, Ricardo viu a oportunidade perfeita. “Na altura, pensei: ‘Este é o meu momento. Vou seguir o que realmente me move.’”
Entre palcos e salas de aula
Hoje, aos 37 anos, Ricardo Silva divide-se entre duas paixões: a docência e os palcos. Como professor de guitarra portuguesa, ensina novos talentos em várias escolas, incluindo o conservatório. “Não sou um professor exigente. Gosto que os alunos encontrem o seu próprio ritmo e se divirtam com o instrumento. Nem todos serão guitarristas profissionais, mas quero que a música lhes fique na alma”, garante, enquanto explica que “a guitarra portuguesa é um instrumento muito difícil, eu próprio tenho as minhas dificuldades, e por isso prefiro que as crianças sintam o instrumento de uma forma mais natural, sem pressa ou pressão”.
Nos palcos, Ricardo Silva tem levado a guitarra portuguesa a lugares que muitos apenas sonham visitar. De Moçambique à China, do Brasil a Abu Dhabi, passando pelos países do Mediterrâneo, a música tem sido o seu passaporte para o mundo. “Gostei de todos os lugares, mas tocar em Pombal, para as minhas gentes, é especial. Aqui, a música tem outro sabor, é mais emocional”. E não podemos esquecer que aos 17 anos, em 2005, foi vencedor do primeiro prémio na Grande Noite do Fado em Lisboa, na classe de instrumentistas.
Para além do registo a solo, de acompanhar com a sua guitarra portuguesa, com artistas de renome internacional, como Marisa ou Júlio Pereira, Paulo de Carvalho e Raquel Tavares, o musico pombalense também já foi convidado para participar diversas vezes do Festival Sete Sois Sete Luas, “que é sempre uma experiencia muito enriquecedora, porque acabamos por levar as nossas influências a outros músicos, e também eu absorvo muito daquilo que os outros músicos tem para mostrar: é uma amálgama de sonoridades, e quase como um banquete de música”, e isso “influência inevitavelmente as minhas criações”, afirma.
Homenagem ao pai
O percurso artístico de Ricardo começou a tomar forma em 2013, quando decidiu homenagear o pai com um álbum especial. “Depois da morte do nosso pai, em 2012, sentimos a necessidade de perpetuar o seu legado. Em 2014, lançámos ‘Semente’, um disco que combinava originais com outras influências”.
Desde então, Ricardo continuou a explorar novos territórios musicais. Em 2018, lançou “Contado à Guitarra”, um trabalho inteiramente original que contou com a colaboração de músicos que marcaram a sua carreira. “Esse disco foi uma forma de juntar todas as experiências que tive até então. Foi muito especial.”
Em 2021, durante a pandemia, Ricardo gravou “A Guitarra e as Violas”, um “álbum (quase) didáctico que reuniu as violas tradicionais portuguesas em duetos com a guitarra portuguesa”, explica. “Foi um trabalho de pesquisa e dedicação. Embora não tenha havido uma grande apresentação, foi muito gratificante”, assegura.
No final de 2024, o guitarrista lançou “Contagem Crescente”, um álbum que “reflecte um pouco da minha trajectória de vida”. O título representa “a ideia de que tudo o que vem do passado nos influencia e molda o futuro. É também uma forma de desmistificar a contagem decrescente do tempo. O importante é o que construímos no presente”.
E não podemos esquecer que o artista faz parte do colectivo leiriense Catraia, que junta Inês Bernardo, Paulo Bernardino, Ricardo Silva, Rui Amado, Adelino Oliveira e João Maneta, numa autêntica odisseia musical com influências do Fado, do jazz e até do pop.
Os desafios da guitarra portuguesa
Questionado sobre a dificuldade de tocar guitarra portuguesa, Ricardo é sincero. “É um instrumento exigente. Com as suas 12 cordas, requer uma grande maturidade física e técnica. Muitos alunos cruzam uma verdadeira travessia do deserto antes de conseguirem dominá-la. Mas, uma vez que se sente o prazer de tocar, a guitarra nunca mais nos deixa.”
Com o fado em alta e novas gerações a abraçarem a guitarra portuguesa, Ricardo Silva vê um futuro brilhante para o instrumento. “Hoje, há miúdos de 18, 19 anos a tocar incrivelmente bem. E o fado, que já foi visto como algo apenas para os mais velhos, ganhou nova vida com artistas como Mariza e Ana Moura. É emocionante ver como está a evoluir.”
Apesar de ter viajado pelo mundo, o jovem músico nunca sentiu necessidade de viver nos grandes centros urbanos. “Prefiro o sossego de Pombal ou da minha actual casa, na Mealhada. Aqui, encontro o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional. A qualidade de vida é incomparável.”
E lá em casa, a música também não falta. Pai de gémeas, Ricardo Silva ofereceu-lhes “um Ukulele, que está sempre à disposição e que ela podem pegar a tocar sempre que quiserem: não como uma obrigação, mas mais como um brinquedo com que podem aprender alguma coisa”, admite. “Elas adoram dançar, mas não faço questão de que sejam músicas. Quero apenas que cresçam num ambiente onde a música é valorizada.”
Contagem Crescente
Ricardo Silva continua a compor e a partilhar a sua paixão pelo mundo. O processo criativo, segundo ele, é um exercício de persistência. “Muitas vezes, as ideias surgem de pequenos motivos melódicos durante as aulas. Depois, o desafio é desenvolvê-las, o que pode levar tardes e tardes de trabalho.”
No entanto, para Ricardo, o mais importante é emocionar. “A expressividade é a fase final do músico. Quando conseguimos fazer sentir algo além da técnica, atingimos um novo nível. Essa é a verdadeira magia da guitarra portuguesa”.
E por falar em sentimentos, Ricardo Silva acaba de fazer a apresentação da sua “Contagem Crescente” no Cineteatro de Pombal, a 18 de Janeiro, acompanhado pelo irmão, João Silva, na guitarra clássica, no baixo Fábio Rocha, Mário Martinho na bateria e percussões, e por Rui Gonçalves, no saxofone, e podemos afirmar que foi mesmo uma noite de emoções…
Entre concertos, aulas e momentos em família, Ricardo Silva prova que a sua contagem crescente ainda tem muito para oferecer. E como ele gosta de dizer, “o futuro é feito das notas que escolhemos tocar”.
ANA LAURA DUARTE
[NOTÍCIA DA EDIÇÃO IMPRESSA]
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