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NATÉRCIA MARTINS

O meu armário

18 de Outubro 2024

Um armário, segundo o dicionário, é um móvel onde se guarda a loiça.

Tenho um armário muito antigo, tão antigo que quando nasci já era armário. É velho, grande. Posso dizer que é um “mamarracho”. Tem um vidro partido. Quando nasci já não tinha aquele vidro. Era e ainda é como se fosse uma janela.

Era de casa da minha avó Amélia. Já foi tudo. Armário de sala, de despensa, arrumação e da cozinha. Em casa da minha avó tinha uma gaveta grande destinada ao pão. O pão cozido no forno mesmo ao lado ca cozinha. Ali havia sempre broa e pão de trigo e centeio, cozido uma vez por semana. O armário é grande, muito grande feito de uma só peça. Deve ter sido feito pelo vizinho, carpinteiro e como este não sabia ler deve ter sido medido a palmo. Era sempre a medida que usava.

O armário deve ter sido feito com a enchó, martelo, pregos e a podoa. Mas não o trocava por um mais moderno.

Lá pelo meu Portugal profundo, bem, encaixado na serra, onde os pinheiros imperam. Eram os materiais mais usados.

Claro que veio parar a minha casa como outras coisas. Onde as casas são mais pequenas e sem espaço não há lugar para ele.

Cabe lá tudo. Ainda tem camarões onde se penduram as chávenas numa prateleira no andar de cima. Hoje tem as compotas guardadas em frascos e na parte de baixo guardo as formas dos bolos e utensílios que uso menos. Mas a falta do vidro ainda continua, assim como a gaveta onde hoje guardo as toalhas que uso menos.

Quando abro a gaveta lembro-me do cheiro que vinha lá de dentro.

Como todos os” cachopos” também tive as minhas birras.

Lembro-me que só gostava do pão da gaveta do armário da cozinha. Porquê? Eu não sabia e só mais tarde vim a descobrir que cortavam o pão com a faca que servia para cortar a cebola e os alhos. O cheiro que ficava na lâmina passava para a fatia do pão. Tão bom aquele pão! E as sardinhas de escabeche? Estas eram guardadas de uma semana para a outra.

O meu pai não dispensava sável frito cortado com uma faca grande, mas muito fina. Assim saía o peixe: muito fininho. Era sempre o seu pequeno-almoço. Recordo o pratinho com a posta do sável de escabeche onde o vinagre se entranhava e lhe dava o sabor. É que morávamos perto da ribeira da Sertã e do Zêzere outrora cheios de peixe. Não faltavam lá em casa. O peixe depois de frito era colocado numa terrina onde faltava uma asa ou mesmo “esborcelada”

Claro que se tirava pela janela sem vidro do armário. O armário da minha infância!

Hoje é considerado um mono que não se encontra em nenhuma casa. Mas está na minha e não sei qual o destino dele quando a porta se fechar e o último de nós dois acabar.

Por incrível que pareça o hábito de tirar a garrafa do licor ou o frasco de doce pela “janela” ainda se utiliza. Há hábitos que não se perdem.

Recordo com alguma saudade as comidas que se faziam lá em casa: Cabaço guisado com arroz, as filhós moldadas com a mão, a matança do porco, morcelas com canela, papas de entrudo feitas de pão velho e a água de cozer as carnes para um cozido especial. Uma bomba! Ah! Pois. Os beirões gostavam de comer bem. E nada fazia mal. Talvez por causa da alimentação dos animais. No natal era sempre um leitão assado, que a minha avó não ia lá com couves e bacalhau. Os leitões nasciam lá em casa e escolhia-se o mais “enfezado”.

Com o armário vieram os alguidares onde se amassavam os coscorões e os bilharacos com a abóbora cozida no fogão de ferro. Com o armário herdei os cheiros que não desaparecem da minha cabeça. Vou ainda fazendo algumas daquelas comidas, mas não têm nem o sabor nem o cheiro daqueles tempos.

A memória nunca desaparece.


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