6 de Outubro de 2024 | Quinzenário Regional | Diário Online
PUBLICIDADE

NATÉRCIA MARTINS

Na Cidade

6 de Setembro 2024

Dizemos que Nova York é a cidade que nunca dorme. Tem monumentos e construções dos quais só ouvimos falar. Nunca lá fomos. Mas sei que é uma cidade com muita gente, automóveis e autocarros. Tem a estação do Metro com andares onde se pode viajar quase o dia todo. Grande, muito grande. Sem querer comparar posso dizer que Lisboa é quase uma Nova York em ponto pequeno.

Também tem monumentos, automóveis, gente, muita gente, negros, sem abrigo e emigrantes à procura de uma vida melhor o que nem sempre acontece. Cidade cosmopolita. Quase tudo podemos encontrar na grande cidade que, também ela, dorme cada vez menos.

Lisboa é a capital de Portugal. É aí que se encontra o Castelo de S. Jorge com a sua vista magnífica sobre o rio Tejo. A ponte 25 de Abril que antigamente se chamava ponte Salazar. Ponte 25 de Abril é mais suave e bonito.

O Museu do Azulejo que é uma obra de arte. O Oceanário e o aeroporto. Tem sete colinas que cada uma dá uma visão diferente sobre a cidade. Muito mais há para dizer sobre Lisboa.

Não moro lá, pois não troco todo este conforto pela aldeia onde tenho casa e onde passo a maior parte do meu tempo junto do marido. Mas tenho lá os filhos. Vou lá de vez em quando. Passo junto a um largo onde os mais velhos jogam à batota, cartas, dominó e outros jogos. Mas nos recantos também há gente. Gente que quase se esconde estando em lugares que são “seus” conquistados quantas vezes ao sabor de uma navalha. Consideram-nos seus porque não têm outro lugar para onde ir. Os deserdados da sorte.

Quando lá passo, quase sempre em passo apressado, vejo-os sem grande pejo a consumirem droga. É ali que se juntam como que a fugir de serem observados. Toda a gente sabe, mas é como se não existissem. Todos têm a suas vidas.

Todas as vezes que passava via um homem ainda novo, cabelo em desalinho, barba mal “semeada” e rosto negro tisnado pelo sol. Andrajoso, mas tinha aspecto de andar por ali há pouco tempo. Pediu uma moeda. Sentou-se no degrau da escada onde passava gente que simplesmente o ignorava. Dei-lhe a moeda e sentei-me no degrau a seu lado, sem nojo do seu aspecto. Fiquei algum tempo a digerir aquele encontro.

Depois perguntei porque estava ali. Olhei e vi uns braços cheios de nódoas negras fruto das agulhas mal conseguidas e utilizadas vezes sem conta. Os olhos sem brilho, cheios de amargura. Escorreram duas lágrimas redondas sobre as calças de ganga surradas e com buracos.

Baixou os olhos, mas de seguida olhou-me de frente, fez ressurgir o brilho de antigamente e contou. Andava na faculdade e alguém quase o obrigou a fumar um charro. Depois outro e ainda outro. As drogas duras vieram depois. O vício instalou-se. As drogas consideradas leves já não lhe serviam. Começou a comprar ecstasy e cocaína. Teve vergonha de ir a casa dos pais. Ficou por ali.

Só ele falava como quem quer desabafar. Não tinha ninguém para o ouvir. Eu ouvi-o em silêncio. O silêncio ensurdecedor que ele precisava. O pai passava de vez em quando a ver se o via. Ele escondia-se dentro do capuz do pólo que nunca largava. O curso superior também ficou por ali. Era como os outros.

Um dia pensou que aquilo não era vida, mas o outro que lhe deu o primeiro charro não deixou que saísse. Ele contribuía com o dinheiro que lhe sobrava da droga. Falou como se estivesse sozinho. De uma vez só. Ignorando-me. Tive medo. Medo, pois estes indivíduos não olham a meios e assaltavam-me. Mas não. Ninguém se aproximou. Havia por ali mais escondidos à vista de todos.

Ainda lhe perguntei onde arranjava o dinheiro. Disse que pedia andando de mão estendida. Às vezes encontrava pessoas conhecidas. Já não ligava. Elas davam ou não. Perguntei-lhe onde arranjava se o que pedia não chegasse. Sem hesitar disse que quando o dinheiro não chegava assaltava pessoas mais incautas ou distraídas. Primeiro a medo. Agora já o faz à vontade.  A comida era resgatada, na maior parte das vezes, nos caixotes do lixo. Abriu um pouco a casaco com capuz, que não largava e pude ver a lâmina de uma faca, escondida, mas capaz de entrar “ao serviço” em qualquer momento.

Tirei do bolso das calças uma nota que lhe estendi. Pegou nela com sofreguidão, mas com a mão trémula de tantas vezes picada e cheia de droga. Eu sei qual o destino daquela nota.

Levantei-me enquanto ele se refugiava no muro onde tinha os seus pertences dentro de um pequeno saco de uma superfície comercial.

Pensei que a vida, afinal, não vale a pena para certas pessoas.


  • Director: Lino Vinhal
  • Director-Adjunto: Luís Carlos Melo

Todos os direitos reservados Grupo Media Centro

Rua Adriano Lucas, 216 - Armazém D Eiras - Coimbra 3020-430 Coimbra

Site optimizado para as versões do Internet Explorer iguais ou superiores a 9, Google Chrome e Firefox

Powered by DIGITAL RM