A ‘culpa’ disto tudo é do avô. ‘Manuel 8’, como era conhecido no Barrocal (Pombal), emigrou durante vários anos, regressado às origens, trouxe consigo um gira-discos e alguma música estrageira, mal sabia que com este pequeno gesto iria ditar o percurso profissional de um dos seus netos. Falamos de Graciano Ricardo, ou a lenda dos arraiais de Verão, daqueles que arrancam ao início da noite e chegam a durar mais de 10 ou 12 horas. Haja vontade de dançar.
“O meu avô trouxe de França uma malinha com gira-discos, e lá na rua punha aquilo a tocar para os vizinhos: já era uma pessoa que gostava muito de música, e eu adorava ficar ali a ouvir os ritmos”, recorda o artista. Também o pai, ‘Chico 8’, “era uma pessoa com bom ouvido, e um autodidacta da guitarra”. Lá por casa também havia uma concertina, e o pai, mais uma vez, “gostava de tocar naquilo”. Mais tarde também Graciano Ricardo teve a oportunidade de lhe pegar, “mais em tom de brincadeira”. A verdade é que lhe pegou o jeito.
No alto dos seus 11 anos, o pai, “que percebeu que eu tinha algum jeito para os instrumentos, perguntou-me se queria aprender música”. Nem hesitou: “claro que quero”, respondeu. Na escolha do instrumento continuava interessado na concertina, mas foi o piano que falou mais alto.
Primeiro ‘bailarico’
Tempos mais tarde recebeu “um piano eléctrico, tipo um órgão, ou melhor, era um aparelhinho com microfone e umas colunas” e continuou no mesmo registo. Aos 15 anos fez o seu “primeiro bailarico: em Pousadas Vedras, no café de um amigo da família” e só mais tarde “houve uma apresentação oficial na minha aldeia, no Barrocal”, conta enquanto segreda que guarda “religiosamente esse primeiro cartaz”.
Pelo caminho, “ia fazendo uns casamentos e uns bailaricos: as pessoas gostavam e eu sentia-me realmente bem naquele papel”. Frequentou o Conservatório de Musica até ao terceiro ano. E quando completou os 18 anos decidiu que “queria ir trabalhar para ter o meu dinheirinho: a minha família sempre foi modesta e o meu pai trabalhava muito para nos dar tudo o que precisávamos, talvez por perceber o esforço que fazia, custava-me muito pedir-lhe dinheiro para ir ao café, ou para sair com os meus amigos”, recorda. Como a “vontade de estudar era pouca”, decidiu enveredar pela “pintura na construção civil”.
Chegou altura de “ir para a tropa” e cessou a actividade de pintor. Mas engane-se quem achar que nesse período de tempo a música ficou totalmente esquecida, pelo contrário: foi por lá que aprendeu a tocar gaita-de-foles e fez o curso de clarins. Fez parte da “Fanfarra dos Paraquedistas”, e os olhos brilham quando fala sobre o assunto: “fui dos melhores do meu curso de clarins, e isso deixa-me muito orgulhoso”.
Alguma sorte e muito trabalho
Quando regressa à vida civil começa a dar aulas de música, “com a pouca experiência que tinha”, e sem nunca deixar de parte a animação em casamentos e bailes. “Com alguma sorte e muito trabalho”, Graciano Ricardo começa a criar uma ligação especial com o público e transforma-se num dos nomes mais incontornáveis do panorama regional.
“Um dos pontos fundamentais para a minha carreira foi a abertura do bar Lusitano, em Pombal: o dono convidou-me para tocar à quinta, sexta e sábado, com o Beto”, nessa altura eram os 100-Concerto. A moda pegou, “criei uma ligação com as pessoas que frequentavam o espaço e comecei a ganhar alguma ‘fama’, o que me permitiu continuar este caminho de forma mais sólida”.
Agora com 48 anos, diz que a experiência lhe deu “uma bagagem incrível e muito trabalho”, afinal, “com a frequência que tocava, também precisava de um repertório muito amplo e versátil: não podia tocar todos os dias a mesma coisa, não é?”
E esse é um dos pontos da qual se orgulha mais, o repertório versátil. “Felizmente o meu leque de opções musicais é muito variado: tanto posso tocar num bar, como ir fazer uma festa a um lar de idosos, tocar para miúdos ou fazer um arraial com mais de 1.000 pessoas”.
Mas isso dá muito trabalho, não dá? “Se dá!”, brinca. “As pessoas às vezes pensam que é só chegar ali, montar o material e está tudo pronto, mas há muito, muito trabalho por trás, especialmente nos tempos que correm, em que saiu hoje uma música nova e as pessoas já esperam que eu a toque nesse mesmo dia”. Para que isso aconteça, e acontece, “chego a montar o meu equipamento, em casa, no intervalo entre duas actuações apenas para aprender uma música nova, para trabalhar nos arranjos ou para treinar alguma coisa que sinto que (ainda) não está perfeita”. Claro que os clássicos não podem faltar, “mas é preciso que o repertório seja o mais actual possível, e muito diversificado para dar resposta aos vários momentos da noite”.
Sim, porque a “noite tem muitos momentos e públicos diferentes: principalmente nos arraias e bailes de Verão, onde há pessoas com mais de 60 anos que gostam (e esperam) ouvir um estilo de música, mas também há jovens, que preferem ouvir outro tipo de canções, e depois há estilos e estilos, desde o pimba, à quizomba, passando pelo pop ou pelo chachachá”.
E sem falsas modéstias, admite que “podia tocar durante dois dias seguidos sem repetir nenhuma música”. Haja energia.
Esforço e entrega
E por falar em energia, Graciano Ricardo admite que poderá ser esse o seu “grande, grande segredo: a energia que tenho em palco e a minha personalidade humilde”. Quando sobe ao palco transforma-se, e mesmo “naqueles dias em que depois do jantar só me apetecia deitar no sofá, assim que subo ao palco sinto uma descarga de adrenalina tremenda, uma transformação, uma metamorfose: o esforço e a entrega é o mesmo, seja num espectáculo para 20 pessoas ou para um milhar”. E é precisamente essa ‘vibe’ que cativa o público e que “faz com que as pessoas entrem, também elas, no clima festivo”.
E depois, “há todo um grupo de amigos que se cria, quase uma segunda família de pessoas que não se conheciam de lado algum e que acabam por se tornar em pessoas próximas”, isto porque há toda uma legião de fãs que acompanha o trabalho do músico pombalense, que se conheceram naquele contexto e que se começam a reunir propositadamente para seguir, em jeito de romaria, até ao próximo baile. “Hoje pode ser na Pelariga, mas amanhã na Redinha, em Almagreira ou no Aquadance”. Ou casais que se conheceram num espectáculo de Graciano Ricardo e que hoje estão casados. Ou filhos que ‘puxam’ os pais para as festas.
Tempos de pandemia
E a pandemia, Graciano? “Foi um período muito agressivo, diria mesmo horrível”, não só pela “incerteza do que viria de seguida”, mas também pela quebra do ritmo de vida: “nos primeiros dois ou três meses não fiz absolutamente nada, não tinha vontade, nem ânimo para tocar”, confessa.
No entanto, “também foi um período de viragem”, isto porque “tinha instrumentos que já eram consideramos obsoletos no meio artístico e tinha comprado equipamento novo, que estava parado há mais de um ano, porque ainda não tinha tido tempo para o explorar, para o configurar há minha maneira”, e vai daí que o tão precioso tempo surgiu e “fiz uma transição serena, com tempo para estudar o equipamento novo”. Afinal… nem tudo foi mau!
Claramente que os meses altos são de Maio a Setembro, em que tem uma agenda totalmente preenchida, com espectáculos diários, ou até com duas actuações no mesmo dia, mas o ano acaba por ser praticamente todo preenchido, nem que seja em danceterias, bares ou discotecas. No entanto, “é nos meses de menos agitação” que gosta de parar, do silêncio da serra, de se dedicar “à pequena agricultura”, basicamente: “de recarregar energias”. Sempre com “um tempinho para ouvir coisas novas, para aprender novos ritmos e aperfeiçoar velhos clássicos”.
Causa pública
Que é um incontornável artista ou um ilustre animador, já poucas dúvidas restam. Que tem ‘fome de palco’, que adora sentir a vibração da voz e que faz bailes de Verão que duram até à manhã seguinte, também não será novidade. Mas que é um estudante exemplar e um curioso por natureza, “isso poucos sabem”.
“Senti necessidade de me dedicar a outras áreas” e foi nessa altura que decidiu licenciar-se, aos 42 anos, em “Serviço Social, com notas exemplares: afinal uma pessoa nunca sabe quando é que vai precisar de mudar o rumo”. Para além disso, é crítico e interessado, sente necessidade de ter uma vida activa e uma palavra a dizer: gosta de política e tem assento na Assembleia de Freguesia de Pombal. Assume que “ainda posso contribuir mais para a causa pública: não por enquanto, não neste momento”. Mas “não, não ponho de parte qualquer tipo de participação na causa pública num futuro”. E mesmo “não sendo um projecto, é algo a que não fecho a porta, de todo”. Deixa no ar.
ANA LAURA DUARTE
[NOTÍCIA DA EDIÇÃO IMPRESSA]
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