11 de Novembro de 2024 | Quinzenário Regional | Diário Online
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Rui Nogueira: “No SNS tudo está a ser feito para que fique como um serviço para os mais pobres”

11 de Junho 2024

Licenciou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, especializou-se em Medicina Geral e Familiar. Foi coordenador de internato na região Centro cerca de 15 anos. Passou pela Ordem dos Médicos. Esteve ligado, mais de duas décadas à Associação Portuguesa de Médicos de Família, da qual foi presidente durante dois mandatos. É presidente da mesa da Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde. Curiosamente, e como poucos sabem, também é licenciado em Enfermagem. Falamos de Rui Nogueira, “ansianense de gema”, que nunca perdeu nem o contacto, nem o carinho pela terra que o viu nascer.

Nasceu em 1958, em Ansião, filho de ansianenses. O percurso lectivo iniciou-se por ali, no centro da vila, “no edifício onde é hoje a Loja de Cidadão”, e onde frequentou os dois primeiros anos de escolaridade. Desses tempos recorda a figura “do professor Albino Simões: um homem muito austero e rigoroso, um verdadeiro salazarista, ligado ao regime”, do seu carro “muito grande e de linhas austeras, que condizia com a figura dele”, para além do som que os seus sapatos faziam cada vez que percorria o corredor em direcção à sala de aula, altura em que “todos ficávamos em sentido e nos levantávamos para o receber”.

Mudou-se com a família para Leiria, onde terminou a escola primária e fez dois anos do liceu. “Numa década muito aberta no Mundo, particularmente na Europa, com grandes evoluções, que não se sentiam em Portugal”, Rui Nogueira admite que notou “uma grande diferença no facto de vir de uma vila para uma cidade, com uma realidade totalmente distinta”.

Mas o grande salto deu-se quando se mudou, mais uma vez, para Lisboa, “ai sim havia uma abertura e uma postura cívica diferente”. Apanhou o 25 de Abril de 1974 em plena capital e teve a oportunidade de assistir uma “evolução incrível”.

Findo aquele ano lectivo, rumou a Coimbra, com 16 anos, onde terminou o Liceu. “Estas mudanças de cidade tinham muito a ver com a minha realidade familiar e com a profissão do meu pai”. Foi na cidade dos estudantes que acabou por se fixar, ainda que com “uma enorme ligação a Ansião, onde passava grande parte dos fins-de-semana e pausas lectivas”. Recorda, com nítida nostalgia, as primeiras edições das tradicionais Festas de Ansião, e de por ali, “no pátio do Colégio, onde havia um palco de variedades” terem passado “grandes figuras públicas da televisão, como Simone de Oliveira, Artur Garcia ou Henrique Mendes”, ou dos primeiros ‘Cortejos do Povo’, que descreve como “uma coisa incrível, onde havia uma intensa participação cívica e um grande interesse comunitário”.

 

Percurso adiado

O percurso tradicional ditaria que seguisse para a universidade, e o curso de Medicina já estava escolhido: lá iremos. Mas com a revolução dos cravos, houve também “uma grande confusão, primeiro houve uma entrada massiva nas faculdades, mas depois essas mesmas faculdades fecharam e ficámos sem saber o que iria acontecer: estava completamente perdido”, assume.

“Em Novembro de 1975, no arranque do ano lectivo, os alunos do meu ano não tinham nada: nem liceu, nem universidade”. Foi durante um passeio pela ‘Baixa de Coimbra’ que tomou uma decisão: “não havia telemóveis nem redes sociais, por isso íamos para a Baixa na esperança de encontrar alguém conhecido: íamos fazer ‘piscinas’, como lhe chamávamos”, brinca. E foi num desses passeios que encontrou um antigo colega de turma que lhe disse que iria para enfermagem: “eu queria ir para medicina, mas sem saber muito bem o rumo das coisas achei aquilo incrível e também quis ir”.

Já em casa, pegou nas míticas Páginas Amarelas e contactou a escola em busca de mais informações: “concorri e entrei”. O caricato está no facto do colega não ter entrado: “incrível e injusto”. Entrou no ano seguinte. Hoje em dia, o antigo colega e amigo “é, também ele médico: ele influenciou-me para ir para enfermagem e o meu percurso influenciou-o a ele a seguir depois para medicina”, congratula.

Após a conclusão do curso de Enfermagem, ainda exerceu a profissão durante “cerca de meio ano, no IPO em Coimbra”, mas desistiu porque… já era aluno no curso de Medicina e “percebi que era incompatível estar na faculdade, a tirar medicina, e trabalhar ao mesmo tempo”.

Na altura também surgiu a oportunidade de “dar aulas de saúde” e assim “ganhar algum dinheiro, que dá sempre jeito, e ainda para mais nessa fase”. Questionado sobre essa vontade de seguir medicina, Rui Nogueira confessa tratar-se de outro pormenor caricato da sua vida: os pais “eram muito amigos de um médico ansianense, o Dr. Abel Ferreira, que trabalhava em Lisboa e que eu conheci muito bem”. Lembra-se, em miúdo de o olhar “com grande admiração” e quando percebeu que era médico, “também quis ser médico: porque era uma pessoa muito culta, que ajudava outras pessoas e que eu gostava muito de ouvir”.

Seguiu-se a especialidade, que iniciou em 1990. “Quando conclui o internato fui convidado para fazer parte da direcção da Associação Portuguesa de Médicos de Família (APMF), que era, e porventura ainda continua a ser, a maior associação médica, depois da Ordem dos Médicos”. Na APMF, esteve “mais de duas décadas ligado à direcção” e onde foi presidente por dois mandatos. Passou também pelo corpo directivo da Ordem dos Médicos, onde fez dois mandatos.

 

Preocupação e tristeza

“Desta forma tive muitas oportunidades de viver intensamente o crescimento da especialidade, o crescimento dos cuidados de saúde primários, participar em muitos eventos de grande importância para a afirmação da especialidade”. O semblante descontraído altera-se drasticamente e o rosto simpático fecha, como que a adivinhar preocupação: “vivi muito daquilo que vejo a decair, a desaparecer, a transforma-se”, afinal “hoje temos um Serviço Nacional de Saúde (SNS) com grandes dificuldades de manutenção, e julgo que a perder aquilo que era a sua grande virtude, que era ser universal, gratuito e global”.

O assunto causa-lhe “muita preocupação e muita tristeza, porque faz o contraste com aquilo que vi crescer”, e que “nos últimos anos, paulatinamente, e sem dar muito nas vistas, está a desaparecer”. Para o ansianense, o ex-director executivo SNS, Fernando Araújo, usou uma expressão, num artigo que publicou há uns anos e em que dizia que a “porta está quase a fechar-se”. Pois bem, no entender de Rui Nogueira, “com esta demissão, voltamos à estaca zero, e a tal porta que se estava quase a fechar, fechou-se mesmo: não que ele a tivesse fechado, mas que está mesmo a fechar”. Quanto ao SNS, “não vai acabar, não é essa a questão”, a questão é que se “perdeu um património incrivelmente difícil de recuperar, e refiro-me à cultura organizacional”.

Uma cultura “valiosíssima, que é um espelho da organização, que dá resultados e que tem influência nas dinâmicas organizacionais”. E relembra que quando “António Arnaut fez da figura da oliveira, uma árvore resistente mas que precisa de ser cuidada, a figura do SNS, quis simbolicamente dar a ideia de que é preciso cuidar do SNS”.

No entanto, “esses cuidados não têm acontecido, e ao longo dos últimos 10 anos temos perdido e delapidado esta cultura organizacional, e perdemos o principal património, que são os profissionais de saúde, neste caso os médicos, que dificilmente têm hoje condições de trabalho na maior parte das unidades de saúde”. Culpa a “falta de visão política, não deste ou daquele governo, porque não estou a partidarizar”, mas a “falta de visão política de António Arnaut, que tinha visão e força politica e que hoje em dia não existe: actualmente temos políticos fracos, ‘politicozitos’, sem visão, sem estatuto e sem estrutura ou estofo, e que se vão renovando sucessivamente passando de sítio para sítio sem deixar obra feita”. Não querendo ser “violento”, fundamenta-se na “vivência que tenho dos bastidores”.

E na actualidade, “até teríamos muito mais condições para acolher e desenvolver este serviço”, que foi “delapidando os recursos humanos e o património que é a tal cultura organizacional e ao fim de 10 anos temos um cenário que julgo sem retorno: no SNS tudo está a ser feito para que fique como um serviço para as pessoas mais pobres e para os doentes mais complexos, que necessitam de cuidados muito específicos que seriam difíceis de tratar em serviços privados”.

 

“Debandada geral”

Para o especialista, “há falta de médicos, mas formamos médicos ao nível do melhor que se faz no Mundo, por isso é fácil perceber que o SNS não tem capacidade para atrair”. Os médicos que “começaram há 40 anos no SNS estão agora a terminar o seu percurso profissional”, ainda que “muitos tenham adiado a aposentação tendo em conta a situação que se viveu durante a pandemia”. Assim, “o processo foi ‘adiado’, mas estamos em 2024, e estes próximos anos vão ser de debandada geral”, alerta, “com a agravante de que não criámos condições de atracção para os mais jovens”, lembrando que “formamos cerca de 500 médicos de família por ano, e o SNS não é capaz de captar muito mais que 300”.

Focado no futuro, “é necessário criar condições para trabalhar com mais segurança, com mais apoios, trabalhar em melhores condições, superar as expectativas e diminuir o número de doentes que cada médico tem”, o que não significa “que o trabalho diminui, porque o peso do trabalho num local pode ser muito diferente do peso do trabalho noutros locais”.

Para isso, “temos de desenvolver uma nova cultura, que é a do hospital de proximidade”. No seu entender, “estas estruturas mais pequenas resolvem a maioria dos problemas das pessoas, onde só os casos mais complexos iriam para os grandes hospitais”. Para Rui Nogueira, “temos hospitais que cheguem para aquilo que são as necessidades de grandes hospitais, o que precisamos é de lhes tirar carga com hospitais pequenos e de proximidade”, sem esquecer que “é fundamental desenvolver a rede de serviços de Cuidados Continuados”, mas nada disso será possível “visão política”, humanismo e afecto.

E mesmo com todos os cargos que exerceu, e vai exercendo, continua, com “a mesma paixão”, a fazer consultas diariamente, no Centro de Saúde Norton de Matos, em Coimbra.

ANA LAURA DUARTE

 


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