Já tenho muita idade. Há coisas e pessoas que recordamos e outras não ficam na memória, ou porque não queremos ou porque nos faz doer. Quando nos faz doer é muito difícil o cérebro reter o que quer que seja.
A alma também dói. No meio de tantas coisas passadas há pessoas e factos que nunca iremos esquecer.
É o caso, entre muito mais coisas e pessoas, do carteiro. O Sr. Marcelino. Este era como se fosse da família.
Carregava o saco de cabedal ao ombro com cartas e jornais que na época não eram muitos. Passava sempre lá por casa mesmo que não tivéssemos correio. Ah! As cartas!
Trazia-as por ordem da morada das pessoas. Conhecia toda a gente. Algumas cartas que trazia na mala, adivinhava o que diziam.
O carteiro, naquela época, pelas décadas de 50 e 60, ao estender o braço a entregar a carta, era como se ela pesasse toneladas. Ele sabia, sem as ler a notícia que lá vinha. O marido, por vezes emigrado não iria voltar. A carta com o canto superior esquerdo e com a tarja preta era o mau pressentimento.
As cartas de amor. Estas até saltavam da mão com o amor aconchegado lá dentro.
Quando chegava lá a casa entrava, como fazia quase todos os dias. Também entrava assim noutras casas mesmo que não tivessem correio. A minha mãe perguntava: – Sr. Marcelino, come um pratinho de sopa? Então ele pousava a mala, sentava-se à mesa e comia a sopa com uma fatia de broa ou pão.
É que ele fazia o giro todo a pé e a barriga àquela hora já “dava horas”. Comia o pratinho da sopa e depois de deixar o correio ia fazer o resto do giro. Toda a gente escrevia cartas ou postais. Era a única forma de receber notícias dos familiares.
Quando chegava ao fundo da povoação, voltava e não raras as vezes, levava na volta, as respostas das cartas que entregara antes. Quando tinha tempo ficava na conversa. Gostava de conversar com o meu pai ou até com as Carambas que moravam no fim da aldeia.
As Carambas tinham sempre uma história para contar. Eram todas muito velhas, todas elas para lá dos cem anos. Moravam no meio da mata, junto ao carreiro que lhes servia de estrada. A velha Caramba, sentada na soleira da porta, mal os via ao longe começava a rir, mostrando uma dentadura com falhas de dentes ou melhor dizendo: com dois dentes a espreitar as gengivas calejadas. Dizia que eram tão velhas como os seus antepassados. Aquele casal, onde moravam não tinham homens, mas tinham mulheres e “cachopos”. Como eles apareciam, não sei. Era obra do Espírito Santo, dizia ela a rir. Não cultivavam terra, mas tinham couves e uma “celisca” de carne do porquinho que criavam com as couves e abóboras que iam desaparecendo das hortas vizinhas. A casa ainda lá está e Carambas, também. Uma das histórias que se contavam era a do porquinho que a velha Caramba levou à feira, com um baracito atado numa pata do porco. Era para vender e com o dinheiro comprava pano para fazer uma saia e uma blusa. O comprador, meio cigano, perguntou se o porco comia de tudo, ao que a velha disse que sim.
– Olhe lá. Ele come seixos?
– Não. Isso não come.
Se não come de tudo, não quero!
Nessa feira, não comprou o pano. Encolheu os ombros e falou para si: Pode ser que para o ano venha mais gordinho.
Vem lá o Sr. Nunes. O Sr. Nunes era o meu pai. Sentava-se na pedra que elas mantinham junto à porta, à espera de quem aparecesse. A cadela sentada aos seus pés. A espingarda dobrada e sem cartuchos pousada nos joelhos. Passavam horas à conversa. A caça para o meu pai era isto. Uma boa conversa. O carteiro também se sentava ali, na pedra, a descansar do caminho.
Quanto às cartas que trazia eram de todos os géneros: um familiar que faleceu, ou a rapariga emigrada para Lisboa tinha tido um bebé. As dos namorados não tinham peso. Até lhe saltavam da mão. Tal era a ansiedade de quem as recebia. Quando não trazia carta até a alma lhe doía.
As cartas foram diminuindo. O carteiro já não anda a pé. Passou a andar de bicicleta. Há muito mais casas e pessoas e com a Internet à disposição de quase todos, o volume das cartas também diminuiu.
Hoje o carteiro é uma figura impessoal. Anda de carrinha e deixa o correio, na sua maioria jornais, na caixa que engole tudo, junto à porta. Já não entra e não come o pratinho de sopa.
Todos nós à distância de um “clic” sabemos as notícias na hora.
Tenho saudades do Sr. Marcelino, que já morreu há muito. Também já não moro lá nem recebo carta de namorados.
Perdeu-se o hábito de escrever.
Mas nem tudo se perdeu. Tenho um filho que envia sempre um postal ilustrado do lugar onde vai de passeio.
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