Itália, França, Bélgica, América, Espanha… Coreia do Sul. São milhares os peregrinos que todos os anos fazem os Caminhos de Santigo, de sul para norte, num trajecto que em sentido contrário leva até Fátima. Com vários percursos à escolha, muitos atravessam as Terras de Sicó, especialmente os concelhos de Penela, Condeixa, Ansião e Alvaiázere.
Mais que um território de devoção, os Caminhos de Santiago são de descoberta, de procura, de bem-estar, e uma excelente forma de conhecer novas gentes, tradições, culturas, património… e paisagens.
Encontrámos John e Kristen em pleno Rabaçal, no concelho de Penela. São irmãos e resolveram fazer o percurso “para passar tempo juntos”. Nasceram nos Estados Unidos da América (EUA), onde viveram os primeiros anos de vida. Actualmente, Kristen vive na Suécia e o irmão em Portland (EUA) . “É muito engraçado, estas paisagens fazem-nos lembrar a nossa infância, são muito parecidas às do sítio onde crescemos, perto de San Diego, na California”.
Experiência para a vida
Na ‘estrada’ há seis dias, contam ao TERRAS DE SICÓ que o “caminho é doloroso. Iniciámos o percurso em Vila Franca de Xira e até agora está a correr bem, mas com algumas dores à mistura”, brincam. Por esta altura já devem ter chegado ao destino final, a Santiago de Compostela, são 19 dias de distância, que servem fundamentalmente para “conviver entre nós e com outros caminheiros que vamos encontrando pelo caminho”. Não se trata de uma questão de fé, apenas de uma “experiência para a vida que queríamos partilhar em conjunto”, admitem.
Com uma vida “de escritório”, John é jurista e a irmã administrativa numa universidade local, “é cansativo em termos de responsabilidades”, no entanto “gostamos muito do que fazemos”, mas “sentimos alguma falta de um contacto mais directo com a natureza e com as actividades de exterior”, e talvez por isso esta viagem seja uma “espécie de férias em contacto com a natureza”. Pernoitariam no Zambujal, já no vizinho concelho de Condeixa, antes de seguirem caminho na manhã seguinte, “com vontade” rumo à espanhola Compostela.
Um pouco mais à frente é a bandeira da Coreia do Sul pendurada na mochila que nos chama à atenção. Sungjin segue solitário. Aterrou em Lisboa oito dias antes da passagem pelo Rabaçal. No país de origem deixou a esposa e os dois filhos universitários. Espera regressar “mais forte”.
No alto dos seus 57 anos, o sul-coreano despediu-se de um emprego “muito chato” e resolveu partir à descoberta de si próprio. “Fui bancário durante cerca de 30 anos”, conta, “era um emprego muito exigente, chato e cansativo” e quando deu por si “estava totalmente desmotivado”. Por isso “resolvi despedir-me e partir em busca de mim próprio”. Os filhos “estão criados e a minha esposa percebeu que eu precisava deste tempo para mim”.
Contacto com a natureza
“Já tinha ouvido outras pessoas a falar desta experiência e dos Caminhos de Santiago”. Talvez por isso “resolvi pesquisar sobre o assunto” e… fazer-se à estrada. “As paisagens são muito bonitas e este contacto com a natureza ajuda a que as dores sejam mais suportáveis”, assegura. “Sempre vivi na cidade, onde temos pouco contacto com o natural, pelo que estou muito feliz com tudo o que estou a viver”. Prefere “caminhar sozinho”, ainda que cumprimente todos os ‘companheiros’ de viagem com um sorriso tímido e afável.
Às costas carrega uma “pequena mochila, onde tenho apenas o essencial”, o resto “vou adquirindo conforme vou precisando”. No peito transporta uma câmara de filmar desportiva, para “registar o percurso e mostrar aos meus filhos quando regressar”. Numa espécie de “incentivo, caso algum deles se queira aventurar”, graceja.
Espera chegar a Santiago de Compostela dentro de uma dúzia de dias, o que significa que por esta altura já estará de regresso à Coreia do Sul, onde vai “certamente incentivar alguns amigos a visitar Portugal”. Na verdade o antigo bancário, estava a “adorar a experiência”. “Tenho encontrado pessoas muito simpáticas e acolhedoras”, e no que toca à comida, “é bem melhor do que esperava: já provei bacalhau com broa, arroz doce e caldo verde”, descreve.
Rota das Carmelitas
No sentido inverso, percorre-se a Rota das Carmelitas, que partindo do Carmelo de Santa Teresa, em Coimbra, é um convite para alcançar o Santuário de Fátima através de 111 km desenhados nos concelhos de Coimbra, Condeixa, Penela, Ansião, Alvaiázere e Ourém. Trata-se de um percurso alternativo aos grandes eixos rodoviários, com a vantagem de oferecer aos caminhantes troços mais seguros e confortáveis, onde a natureza acaba por dar um ‘empurrão’ ao cansaço.
Procurada durante todo o ano, é entre Abril e Outubro que se nota uma maior afluência de caminhantes, como conta Cláudia Bonito, empresária na área da restauração e hotelaria, no Rabaçal, enquanto explica que “são os caminheiros que nos dão o nosso sustento”, afinal “são eles que diariamente consomem os nosso produtos e pernoitam por aqui”. Aliás, “se não fossem eles muitos de nós, comerciantes, não conseguíamos manter os nossos negócios em funcionamento”.
De acordo com a empresária, “acredito que maior parte da população e até dos nossos agentes políticos, não têm a noção da quantidade de peregrinos que passam por estes territórios”, assegurando que “não há praticamente dia nenhum que não passe por aqui um caminheiro”, e por isso lamenta que “não haja um maior cuidado na preservação dos caminhos, na limpeza dos espaços e na manutenção dos nossos equipamentos comunitários”.
Na verdade, “nos meses de maior afluência, em Maio e Outubro, chego a ter lotação esgotada durante várias semanas”, conta, explicando que o albergue que gere disponibiliza 32 camas em simultâneo. E mesmo sendo “cliente que fica, maioritariamente, apenas uma noite, é fazer as contas…”, observa.
Afinal, “passam por aqui pessoas do mundo inteiro e penso que seria importante deixar uma melhor imagem do nosso património”, uma vez que “há muitos peregrinos que fazem estas rotas por sugestão de outros que já a fizeram, o que me leva a entender que quanto melhor for a imagem que levam do Rabaçal, melhores serão as referências que vão dar a outras pessoas”, sublinha.
Influência financeira
Também Rita Mendes, proprietária de um estabelecimento comercial no centro da aldeia do Rabaçal, admite que “são os peregrinos que nos dão maior lucro” e apesar de “ter uma boa clientela local”, são os caminheiros que “trazem maior influência financeira”. Não fazem compras “muito avultadas”, até porque “procuram bens de primeira necessidade e alguns produtos regionais como o queijo e o vinho”, mas como “são em grande número, ajudam muito a impulsionar a economia local”.
“São pessoas muito simpáticas, que irradiam uma paz interior muito especial” e para além disso “gostam muito da nossa gastronomia, têm também sempre uma palavra positiva para dizer sobre a nossa região, ficam encantados com as nossas paisagens, dizem que lhes dão ânimo para continuar”. E mesmo a mais de três centenas de quilómetros do destino final “não parecem ter receio do que ainda está por vir”, nota.
2023 foi ano recorde de caminhantes
De acordo com a Oficina do Peregrino, o Caminho é cada vez mais procurado. Só em 2023 bateu recordes: perto de 450.000 caminhantes palmilharam os vários percursos europeus, com destino a Santiago de Compostela. O Caminho mais percorrido é o francês, que registou no ano passado a passagem de cerca de 220.000 pessoas, mas logo a seguir no mapa está o Caminho Português, em todas as suas variantes, com o registo de 88.000 caminheiros. Um número impressionante de gente que é fundamental cativar e preservar para também ajudar a alavancar territórios como os nossos.
ANA LAURA DUARTE
[REPORTAGEM PUBLICADA NA EDIÇÃO IMPRESSA]
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