Natural de Ansião, passou por Espanha, Inglaterra, Estados Unidos e Canadá em busca de conhecimento, foi a primeira médica pediatra em Portugal a obter competência em medicina paliativa pela Ordem dos Médicos. Coordenadora da Equipa Intra-hospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos Pediátricos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e docente da Faculdade de Medicina de Coimbra, Cândida Cancelinha desmistifica e revela o caminho a trilhar na área em que é reputada especialista.
TERRAS DE SICÓ (TS) – Fez um percurso académico na Medicina. Escolheu especializar-se em Pediatria, um caminho que parece “bonito”, mas optou pelo trajecto mais difícil… os Cuidados Paliativos Pediátricos. O que a levou a tomar esta decisão?
CÂNDIDA CANCELINHA (CC) – Tendo em conta as várias áreas de que gostava, e tendo em conta que sempre gostei muito das relações humanas, vi a Medicina como uma área de grande interesse. No que diz respeito à especialização em Pediatria, não foi a minha área de interesse inicial, mas que se foi revelando uma área em que conseguimos fazer tudo o que é o caminho da Medicina numa população que é especial, que é mais vulnerável, mais frágil e que está muito dependente daquilo que é o cuidado do outro. Quando escolhi Pediatria, em 2009, ainda não se falava sequer em Cuidados Paliativos Pediátricos, já havia alguma história na Europa, mas em Portugal estávamos a zeros. Quando fiz a especialidade, no Hospital Pediátrico de Coimbra, fiquei a trabalhar na área de internamento de crianças que têm doenças de várias origens: doenças pulmonares, cardíacas, gastrointestinais, doenças neurológicas e a nossa unidade de internamento é uma unidade que tem muitos meninos com doenças crónicas, alguns que são internados mais que uma vez, outros com internamentos muito prolongados. Esta necessidade surgiu da noção que comecei a ter de que não tínhamos respostas para crianças com necessidades tão complexas. Entretanto, surgiu uma pós-graduação, em Portugal, de Cuidados Paliativos Pediátricos e resolvi avançar. Fazia-me sentido porque estava a cuidar de crianças com quadros complexos, tinha dificuldade e sentia que apesar dos cinco anos de especialização, havia ferramentas de respostas que ainda não tinha. No términus da pós-graduação, fiz um estágio em Madrid, no Hospital Niño Jesus. Se a pós-graduação já me tinha aberto todo um mundo novo, foi com a ida para Madrid e ver uma equipa que é uma das maiores de Espanha, que me fez perceber que era este o caminho a percorrer.
TS – O seu trabalho decorre em ambiente hospitalar, mas sobretudo em ambiente familiar…
CC – Cuidar fora do ambiente hospitalar, cuidar dentro do ambiente natural destas crianças, e destas famílias, é uma forma de cuidar completamente diferente: ali estão em casa, no quarto deles, com os cheiros deles, com as rotinas, e temos que nos adaptar. Para além disso, é um espaço de oportunidade para compreender fontes de problemas que não conhecíamos até à primeira visita em casa, dificuldades de acesso, falta de produtos de apoio… O que nos dá também uma noção da realidade completamente diferente de como vivem estas crianças, para além disso a nossa equipa não faz visitas apenas a casa das crianças, também vamos às escolas, aos infantários e às instituições que frequentam, o que nos dá o privilégio de contactar com outras pessoas que todos os dias lidam com estas crianças, que têm dúvidas e dificuldades e que têm necessidades de ensinos que nunca foram feitos, e isso é também uma mais-valia naquilo que é o acompanhamento holístico e integrado entre todos estes meninos.
TS – Trabalhar em Cuidados Paliativos Pediátricos é triste, como as pessoas imaginam?
CC – De facto, um dos grandes mitos é esse: que trabalhar em Cuidados Paliativos Pediátricos é triste e deprimente. É óbvio que tem momentos emocionalmente muito exigentes. Uma perda nunca é fácil para nenhum membro da equipa, no entanto, 95% dos nossos dias são a fazer a diferença pela positiva, a ajudar as famílias a ter ganhos, a serem felizes e muitas vezes temos mensagens de gratidão mesmo nos momentos mais difíceis, que são tudo menos tristes e que nos mostram o reconhecimento e o agradecimento de quem trabalha connosco todos os dias, e que estas crianças, e estas famílias, sentem alguma diferença e algum impacto na qualidade de vida. A maior parte dos nossos dias são de ganhos muito importantes. Às vezes não são os ganhos que queríamos ter, mas o facto de conseguirmos um sorriso, um voltar a ir para casa, um regresso à escola, ou voltar a conseguir comer, são ganhos que aprendemos a valorizar de forma muito diferente com estes meninos.
TS – Como se diz a uma criança que está doente? Que tem uma doença grave, uma sentença…
CC – Ao contrário daquilo que se pensa, as crianças são muito menos complexas que os adultos. Em primeiro lugar, o que sabemos é que as crianças não querem mentiras, que não são todas iguais, e temos que respeitar. Há crianças que com mais vontade de fazer perguntas, outras menos. Em Pediatria, os serviços são relativamente pequenos e as crianças conhecem-se umas às outras, lidam umas com as outras e vão partilhando entre eles: vão sabendo dos agravamentos, ou quando há um falecimento, e por isso, a primeira regra é não mentir e dar respostas às perguntas deles. Abrir o livro. Ir devagarinho, tacteando consoante a capacidade de absorção da informação, com a certeza de temos que ser muito sinceros, abertos e compassivos. Depois temos crianças que nos dizem que não querem saber nada. Em termos de sentença, não há sentenças em doença nenhuma: já tivemos meninos que achávamos que se calhar no ano seguinte não estariam entre nós e que nos surpreenderam muito, que se superaram. Os trajectos nem sempre são descendentes: há trajectos de muitos altos e baixos e o nosso papel é assegurar que, independentemente da trajectória, o que nos interessa é a qualidade dessa trajectória e a forma como os dias são vividos.
TS – O que custa mais: lidar com as crianças ou com as famílias?
CC – Confesso que a minha dificuldade em escolher Pediatria eram as famílias. Em Medicina temos que perceber, seja em que área for, que nunca vamos lidar com doentes iguais, e esse é um exercício muito exigente e desafiante, mas também muito bonito, que é a nossa capacidade de nos adaptarmos a personalidades diferentes. Podemos ter um menino, e uns pais, que estão em pólos opostos de decisão e temos que respeitar as duas visões e chegar a um plano consensual. Este é um desafio de gerir expectativas, medos, personalidades e passados anteriores que possam ter influência no presente. É óbvio que há famílias mais exigentes e mais desafiantes: há famílias numa fase de intenso sofrimento e quando chegamos já passaram por anos e anos de médicos, de especialidades diferentes, hospitais diferentes, países diferentes, várias opiniões, que estão tão exaustas e é natural que possam ser muito reactivas e que seja muito difícil de entrar, mas é muito bonito ver que mesmo nessas famílias mais difíceis, quando conseguimos criar relação, faz toda a diferença, quer para eles enquanto família, quer para nós, profissionais de saúde.
TS – Foi a primeira profissional da área de Pediatria a ver atribuída a “Competência em Medicina Paliativa” pela Ordem dos Médicos e, mais recentemente, recebeu o Prémio Investigador Júnior da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos. O que significam para si estas distinções?
CC – Só serei melhor profissional se tiver mais formação e se estiver mais capacitada a dar resposta. Nesta área vão havendo muitas actualizações, vão acontecendo muitas coisas, portanto, quanto mais actualizados estivermos, melhor. A decisão de fazer a Competência em Medicina Paliativa prendeu-se com a importância do desenvolvimento dos Cuidados Paliativos em Portugal. Não tínhamos nenhuma equipa em Portugal que conseguisse dar formação prática, por isso, fui para Madrid. Depois de Madrid, estive em Londres (Inglaterra), estive em Boston, nos Estados Unidos da América, em Toronto, no Canadá, e depois fiz mais um mês de Cuidados Paliativos em adultos, já em Portugal, em Bragança. No final deste percurso tive esse reconhecimento, mas poderia ser qualquer outra pessoa. Esta competência possibilitou que a partir de 2021 nos tivéssemos em Portugal a capacidade de formar outros profissionais nesta área e que não tivessem de ir para fora. Obviamente que podem continuar a ir para fora, mas já temos em Portugal formação e podemos ter mais gente a fazer formação e ter mais profissionais a dar capacidade de resposta, porque na verdade ainda falta muito, e a maior parte das crianças com necessidades paliativas ainda não têm acesso a estes cuidados. Pessoalmente, e na minha carreira profissional, foi muito importante, mas é um passo que também coloco ao serviço dos outros. Em relação à investigação, é uma área diferente, mas para mim, enquanto profissional, é fundamental quantificar e analisar o impacto real do nosso trabalho. É daí que surge o gosto e o interesse na investigação. Só investigando e publicando é que conseguimos dizer que fazemos a diferença. É preciso mais investimento nesta área e são precisas mais equipas e é preciso dar respostas. Tive o privilégio de integrar o grupo de investigação EOLinPLACE, da Universidade de Coimbra, liderado pela Bárbara Gomes, que é a referência nacional na investigação na área dos Cuidados Paliativos. Para além dos trabalhos que fazemos neste âmbito, também fazemos alguns trabalhos de impacto dentro da nossa equipa. Como dou aulas de Pediatria, também tenho a oportunidade de orientar alguns alunos a fazer tese de mestrado nesta área e foi nesse caminho que surgiu este reconhecimento pela Associação Portuguesa. É óbvio que me enche de orgulho, mas o que me deixa mais feliz é saber que em Portugal já estamos a conseguir demonstrar impacto positivo nas equipas de Cuidados Paliativos Pediátricos, e esse é o melhor reconhecimento que se pode ter.
TS – No seu ponto de vista, o que falta fazer em Portugal nestas matérias?
CC – Muita coisa. Em primeiro lugar é preciso que as equipas tenham tempo para se dedicar exclusivamente a Cuidados Paliativos Pediátricos. Em Coimbra, temos a oportunidade de todas trabalharmos na área, mas temos muitas equipas de profissionais que fazem consulta em diversas áreas e que têm apenas uma ou duas horas semanais para fazer cuidados paliativos. Portanto, o primeiro caminho é criarmos equipas exclusivamente dedicadas aos cuidados paliativos. Num segundo passo, precisamos que todos os hospitais possam ter uma equipa que preste algum tipo de apoio em Cuidados Paliativos Pediátricos e ainda estamos muito longe dessa realidade. Outra necessidade fundamental é o apoio domiciliário. Em Coimbra tempos o privilégio de ter uma equipa domiciliária a funcionar os cinco dias da semana, e que dá resposta a toda a Região Centro. Somos a única no país, e é muito nesta actividade domiciliária que prevenimos as idas à urgência e os internamentos, possibilitamos que as crianças estejam em casa, que vão à escola, e portanto, o investimento seguinte tem que ser o de facultar recursos e possibilidades a estas equipas de incrementar o seu trabalho em ambiente domiciliário e que este tipo de resposta esteja disponível onde quer que residam estas crianças, e não apenas na Região Centro.
TS – Há muitas crianças a necessitar deste apoio e sem acesso a estes cuidados?
CC – Os dados de 2018, do Observatório, mostram-nos que menos de 10% das crianças com necessidades paliativas em Portugal têm acesso a estes serviços, e estima-se que cerca de 8.000 crianças em Portugal precisam de Cuidados Paliativos Pediátricos. O mito número um é pensarem que estes cuidados são apenas para crianças com cancro e que estão a morrer, e essa não é, de todo, a maior parte da fatia das crianças que acompanhamos. A maior parte das crianças que estamos a acompanhar não estão a morrer: têm doenças crónicas, muito complexas, com várias necessidades, mas que vão viver por muitos anos. A preocupação é perceber a razão pela qual não têm acesso a estes cuidados, e pode não haver equipas na sua área de residência, ou as equipas podem não ter capacidade de resposta, mas também temos que olhar para o facto de muitos profissionais ainda não estarem sensibilizados para a referenciação destas crianças a cuidados paliativos.
TS – Em relação aos profissionais de saúde, é preciso sensibilizar para estas temáticas?
CC – Se compararmos a actualidade com a realidade que se vivia há cinco anos atrás, acho que a sensibilidade é muito maior, e há cada vez mais pessoas a querer fazer formação. Sinto que há mais pessoas a saber do que estamos a falar quando se trata de cuidados paliativos, mas há ainda muitos profissionais, sobretudo médicos, com muitas barreiras e com muitas ideias erróneas sobre o que é isto dos Cuidados Paliativos. É interessante ver que há crianças que nos chegam porque são as próprias famílias a pedir, e o médico assistente nunca propôs, e isso tem que nos fazer pensar. Ainda há muito o mito de que se a criança for referenciada para Cuidados Paliativos a família vai achar que o filho está a morrer, e esse é um mito que está muito enraizado e que é nossa função desmistificar. Por outro lado, também não referenciam porque acham que se não está a morrer, ainda não é altura certa para referenciar, quando é precisamente o contrário que deve acontecer. Trabalhamos precisamente para que possam viver, mas com qualidade.
TS – Sente que ainda há um estigma associado aos cuidados paliativos e que ainda são vistos como uma ‘coisa’ para idosos?
CC – Tem vindo a ser feito um trabalho muito importante nessa desmistificação, mas ainda há um trabalho muito longo a percorrer. Ainda há muitas pessoas a associar os Cuidados Paliativos a internamentos sombrios de pessoas que estão a morrer, com uma doença oncológica, sozinhas e isoladas da sociedade, e temos algumas famílias que nos assumem que quando lhes falaram em Cuidados Paliativos ficaram muito assustadas, mas depois percebem que Cuidados Paliativos são sinónimo de qualidade de vida e de melhoria dessa qualidade de vida. Quando fazemos formação, e eu participo em vários cursos, temos obrigatoriamente que divulgar e desmistificar os Cuidados Paliativos, que são uma área da Medicina como outra qualquer, mas que lida com o sofrimento de pessoas que estão a atravessar processos de doenças crónicas e muito complexas. Muitas vezes esse sofrimento é intenso, seja ele físico, psicológico ou emocional e portanto o trabalho destas equipas é dar resposta a este sofrimento. Posso dizer que já tivemos vários casos de meninos que tiveram alta dos Cuidados Paliativos, assim como de adolescentes que transitam para as equipas de adultos. Ainda agora tivemos uma menina, com um quadro de muita gravidade, que foi submetida a um transplante cardíaco, a intervenção correu muito bem e está prestes a ter alta da equipa. Estamos e apoiamos no sofrimento, independentemente da sua duração e do que irá acontecer a seguir.
TS – Como se chega a casa depois de um dia de trabalho numa unidade de Cuidados Paliativos Pediátricos?
CC – Há dias e situações, em que é impossível não repensar a nossa vida e pensar no que é realmente prioritário… A estratégia mais importante é a de pensar que conseguimos fazer a diferença, e isso melhora substancialmente o meu dia. No caso das perdas temos de fazer o nosso luto, e temos de conseguir continuar a tentar fazer melhor. Em equipa, sentimos importante fazer uma reflexão sobre os aspetos que poderiam ter sido diferentes e, sobretudo, sobre os ensinamentos que nos possam ajudar a crescer, quer enquanto pessoas, quer enquanto profissionais. Porque esses ensinamentos poderão, mais tarde, fazer a diferença na vida de alguém.
TS – Será por isso que a música tem uma influência tão grande na sua vida? Afinal, é parte integrante da Banda Filarmónica Ansianense…
CC – Saindo do contexto profissional, tenho muita vontade de normalizar o mais possível e de voltar à base enquanto pessoa. A música sempre esteve muito presente na minha vida, aliás, a música e as pessoas que fazem parte dela, porque isto das filarmónicas, para além da música, é também uma segunda família onde se criam relações muito importantes. Quem trabalha em Cuidados Paliativos aprende a valorizar aquilo que lhe faz sentido e que lhe é importante. Dentro da família, dos interesses e dos desejos para a nossa própria vida, temos mesmo de valorizar estes momentos, porque nunca sabemos quanto tempo cá estamos, ou quanto tempo cá estamos com saúde, por isso, devemos valorizar aquilo que nos faz sentido e a música fará sempre sentido na minha vida.
TS – A nível profissional o que perspectiva para o seu futuro? Até onde quer chegar?
CC – O importante é desafiar-me a cada dia. Neste momento estou a fazer o doutoramento em Cuidados Paliativos, comecei este desafio no ano passado e penso que me vou desafiando nas necessidades que vou encontrando no dia-a-dia, no meu percurso pessoal e profissional. Não há meta, na verdade, a meta é desafiar-me todos os dias a fazer melhor e querer estar sempre em constante actualização, sobretudo adaptada às necessidades dos doentes e das famílias que acompanhar.
ANA LAURA DUARTE
[ENTREVISTA PUBLICADA NA EDIÇÃO IMPRESSA]
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