15 de Janeiro de 2025 | Quinzenário Regional | Diário Online
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Joaquim Neves: o sapateiro que também foi dirigente associativo e maestro

18 de Fevereiro 2024

Passou pela direcção de várias associações concelhias, foi maestro da aclamada banda Atómicos, mas é como sapateiro que se define. Joaquim Neves, natural de Soure, ou ‘Nevex’, como é carinhosamente conhecido, já se dedica à arte da sapataria “há mais de 60 anos”. No alto dos seus 78 anos está reformado, mas não consegue estar parado.

Quem entra na sua oficina, localizada no coração da vila de Soure, não consegue ficar indiferente à quantidade de material que lá se encontra. Há formas, ferramentas e fivelas, há máquinas de várias formas e feitios, sapatos feitos à medida e um cheiro a couro que nos faz viajar no tempo.

Seguiu as pisadas do tio, primeiro como aprendiz de sapateiro, depois como colega de profissão. Passou por “dois patrões diferentes” até se tornar o seu próprio patrão. Dos pequenos arranjos, rapidamente começou a criar sapatos de raiz. A evolução deve-se a “uma formação muito rígida”, que hoje em dia vê como “o alicerce principal para qualquer profissão”. Afinal, “se formos rígidos na formação, acabamos por ficar preparados para qualquer situação que nos apareça de futuro”, afirma bem-disposto.

“Lembro-me que fazia ‘competições’ com outro aprendiz, para ver quem cozia os sapatos mais depressa, ou quem tinha o ponto mais firme”. Na verdade, foi essa formação inicial que lhe despertou o gosto pela arte da sapataria. Ao longo dos mais de 60 anos de actividade, orgulha-se de dizer que calçou “muita gente”, particularmente os executantes de mais de três dezenas de ranchos folclóricos espalhados por toda a região Centro.

“Neste momento sou o único sapateiro da região que ainda produz o calçado de forma totalmente artesanal”, e é essa a razão que “muitas colectividades me procuram para produzir o calçado dos dançarinos dos ranchos folclóricos e etnográficos”. E sim, “são exactamente iguais aos que se viam antigamente”.

Se na região os sapatos vão de encontro a um modelo que Joaquim Neves domina na perfeição, “já tive outros desafios que me deixaram muito satisfeito”. Fala do telefonema que recebeu do presidente de um colectividade em Fornelos do Monte, “para ser sincero nem sabia onde é que ficava essa terra”. Mais tarde veio a saber que se situa em Vouzela, Viseu. O dirigente lançou-lhe um desafio: “criar o calçado para os seus dançarinos. Era um modelo diferente do que se usa por aqui”. Pediu-lhe um sapato velho, que serviu de modelo, e depois de o estudar, conseguiu replicá-lo de forma “absolutamente igual”. O cliente ficou satisfeito, ‘Nevex’ ainda mais… “porque superei o desafio de forma exemplar”.

O sapateiro afirma que esta profissão “custa muito a aprender, não é do pé para a mão” e que, mesmo com 78 anos, continua a aprender e ainda vai “fazendo algumas coisas”. Se aparecer alguém interessado em aprender o ofício, “estou pronto para ensinar”, garante.

O negócio teve várias flutuações ao longo dos anos, e ‘Nevex’ explica que, antigamente, “vinham aqui e eu tirava a medida”, sendo que agora já não se procura este calçado artesanal. “Agora, os clientes vêm porque alguém passou a palavra e recomendou a virem cá comprar um par de sapatos ou de botas”.

Joaquim Neves explica que num par de botas o lucro é mínimo, paga o material usado, mas “não paga o tempo nem o trabalho que tenho”. Por falar em tempo, leva um dia a fazer um par de botas. Impressionante.

“Profundamente orgulhoso”

Ao que parece, o sapateiro sourense “nunca disse que não a um bom desafio”. Talvez por isso tenha o seu nome gravado em várias instituições concelhias, como é o caso da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Soure, que presidiu “durante poucos anos”, do Grupo Desportivo Sourense, da qual foi presidente e director, ou da Banda de Soure, que presidiu durante décadas e da qual ainda faz parte, na actualidade, enquanto secretário da Assembleia Geral.

“Só tenho pena que a saúde já não o permita”, caso contrário “sei que ainda poderia fazer muita coisa por algumas instituições”. Não quer “medalhas nem reconhecimentos pomposos”, prefere “ser lembrado pelo bem que fiz por onde passei” e isso “deixa-me profundamente orgulhoso”. Sem falsas modéstias “trouxe grandes melhoramentos às instituições por onde passei”, admite Joaquim Neves.

Embora afastado do associativismo, pelo menos de forma mais oficial, Joaquim Neves não tem dúvidas de que “um concelho, uma vila ou uma aldeia sem associativismo é uma terra sem cultura, porque a cultura é feita pelas colectividades”, por isso “ainda gosto de participar” em algumas das actividades das associações. Na rua há quem lhe continue a chamar presidente, e é “esse carinho que me faz pensar que valeu a pena”, segreda.

Maestro dos Atómicos

Engane-se quem achar que as surpresas se ficam por aqui: Joaquim Neves foi, também, “maestro dos Atómicos”, uma banda oriunda de Soure, que atingiu o estrelato no final dos anos 80 e início dos anos 90 do século passado. “Tinha um ouvido formidável para a música”, e mesmo “sem formação musical, tudo batia certo”.

Recorda essa época da sua vida com “grande saudade, foram bons tempos, que ainda hoje recordo com os meus camaradas e amigos”. Nessa altura, “corremos muito, éramos consideramos um grupo de luxo”, fazia concertos no carnaval da Figueira da Foz, espectáculos no estrangeiro e “até fomos convidados para ir tocar à televisão”, relembra com o sentimento de que “elevámos o nome de Soure por onde passámos”.

Sem esconder o “amor” que tem pela terra que o viu nascer, ‘Nevex’ assume-se como “crítico do sistema”, que “gostava de ver o concelho a melhorar e que o comércio e os comerciantes não fossem desprezados”, correndo o risco de “se transformar numa vila fantasma”. Isto porque “o comércio é o espelho do concelho”. Assim, “se não há comércio, também não há pessoas nas ruas, não há movimento. Todos perdem”, vaticina.

Já lá vai o tempo em que “dividia os dias entre a loja de Soure e uma outra em Condeixa”, a primeira continua de portas abertas todos os dias da semana, e “é raro o dia em que não entre um cliente, nem que seja para trocar as solas de um par de sapatos, ou para pequenas reparações”, a outra fechou portas há uns anos. “Mas ainda há pessoas de Condeixa que chegam a vir a Soure de propósito à procura dos meus serviços. Aquela gente foi muito boa para mim, criei boas amizades”, congratula-se.

Por mais passos que dê, é na arte da sapataria que vai continuar a trabalhar, no entanto, e porque “o negócio já não é o que era, também faço pequenas peças de artesanato”. Na verdade, dá forma a pequenos pedaços de couro sobrantes. Faz malinhas e carteiras, porta-chaves e até travessões para o cabelo das senhoras.

Uma certeza tem: descalçar as botas está fora de questão!

ANA LAURA DUARTE


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