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NATÉRCIA MARTINS

Chanfana

16 de Fevereiro 2024

Não! Não vos vou falar da cabra velha e magra, cozida em caçoila de barro preta. Essa, qualquer pessoa de Miranda do Corvo, Semide ou Condeixa, sabe como se faz. Temperada com a cabeça de alho inteira, louro e vinho tinto, carrascão. Toda esta gente sabe fazer e… comer.

Não é dessa. Dessa nem valeria a pena.

Uma destas noites, sem sono, andei a remexer na memória de velhos tempos, tão velhos como eu!

Veio cá acima a lembrança: a Chanfana. Pois é. A Chanfana era a mulher do Ti Zé que moravam ao cimo da rua. Já muito velha. Não sei, nem ninguém sabia a sua idade. Se calhar nem ela sabia ao certo. Sempre vestida de negro. Lenço preto na cabeça. Não era luto por nada nem por ninguém. Trapos velhos que recolhia onde os havia. Descalça ou com tamancos tão velhos como ela. Os calcanhares que nunca conheceram meias, encoscorados do gelo que por ali há, nos invernos rigorosos, que se fazem e ainda hoje se fazem sentir.

Levantava-se cedo para apanhar ervas medicinais, tais como erva de São Roberto e outras lá em cima no monte. Com o orvalho da manhã curam melhor as “maleitas”. Havia um dia, quando calhava, ia lá uma carrinha buscar os panais que ela ia juntando.

A escada de pedra, construída há muitos anos e cujas lages de basalto já não se equilibravam à passagem das pessoas, que se diga, não eram muitas as que a visitavam, baloiçavam antevendo um trambolhão que ninguém deu.

Chamar um pedreiro? Ui! Nem, pensar. É que o pedreiro ganha dinheiro, que ela, sovina, guarda numa pequena bolsa que fez com retalhos adquiridos sabe Deus como. Anda sempre com ela presa à cintura por baixo do avental.

Chanfana é alcunha. Não sei a origem dessa alcunha. Certamente herdada de antepassados que eu não conheci. As telhas do telhado sem forro deixavam escapar raios de sol, a visitar o chão de madeira com tábuas que há muito tempo não eram lavadas.

Naquele tempo, a aldeia, encravada na serra num Portugal escuro e esquecido, não tinha luz eléctrica.

A candeia pousada ao fundo da cozinha, em cima de um banco, tinha o depósito cheio de azeite trazido do lagar, lá por alturas do Natal. Aquele azeite, igual ao que se deitava no prato a temperar as batatas, feito com azeitonas apanhadas ao “rebusco”, no fim da safra. Não era de qualidade. Não tinha importância. A almotolia também não tinha muito azeite, cheia era um desperdício, e ela não era mulher de desperdícios. Não tinha cão nem gato. É que eles comiam e ela pouca comida fazia. Não dava para eles. Também não tinha filhos. Por acaso ou opção. Não sei!

À segunda-feira ia com o seu Zé à ilharga, ao mercado. Ele paciente e calado. Ao acercar-se das mulheres que vendiam sardinha coberta de sal e com as cabeças “ugadas” viradas para cima, olhava, gulosa, mas não queria desperdiçar o dinheiro com sardinhas. O seu homem queria comprar seis. Não. Apenas duas que eram para ele. Chegavam muito bem. E ele, bem-mandado, comprava duas. Chegados a casa, lume aceso num borralho com brasas feitas na véspera e com galhos apanhados na sua vinda para casa, do dia-fora que de vez em quando fazia. O seu Zé apanhou de cima da mesa um naco de broa. Sentou-se no banquinho junto ao borralho, agora com brasas bem despertas e colocou em cima as sardinhas a assar. A Chanfana sentou-se ali ao lado com olhos gulosos. Ele virou-as e assou do outro lado. Com a ponta da tenaz tirou-as e colocou em cima do pão. Sem azeite. Elas, secas do sal, ainda tinham gordura que chegava. Ela olhou, olhou e mostrando os dentes mal alinhados e podres disse: – Zé, dá-me só a cabecita! Ela comia as cabecitas das sardinhas. Era sempre o mesmo.

A Chanfana faleceu há muito tempo. A rua deserta faz-me pena. Conheci-a com os moradores todos, desde a Quinta da Portela cujos donos também faleceram. Hoje é uma quinta de casamentos com arruamentos de buxo e trepadeiras.

O Xico sapateiro, taberneiro e com o balcão seboso dos copos entornados e as mangas das camisas dos homens a roçarem-se no mesmo balcão.

Que saudade dos bailes, na eira, abrilhantados pela concertina roufenha e notas aldrabadas. Servia e servia bem! A dona da taberna, mulher gorda e anafada de carnes tinha uma filha para casar. Esta aceitou namorar e mais tarde casar com o rapaz de uma outra freguesia que apareceu por ali. Fato amarrotado e camisa de linho, que foi dançar com a menina “ Coceição” a moda do “ grafanhoto”.

Não moram ali. A rua está quase deserta. Quando lá vou, venho tão triste como as roupas da velha Chanfana.


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