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NATÉRCIA MARTINS

Santos na Terra

15 de Dezembro 2023

Gabava-se o compadre S. Pedro que nunca bebera água desde o seu nascimento há uns 60 ou 70 anos, tantos quantos deveria rondar na altura.

Claro que, S. Pedro era alcunha. Já o pai tinha o mesmo nome e o neto, que ainda é vivo também o herdou. Família, onde o gasto de água era mínimo, até porque carregá-la aos ombros ou à cabeça seria, na época e mesmo agora, tarefa penosa. Portanto, havia que poupar. O vinho ou aguardente tinham um sabor bem mais agradável. Opiniões!

Há terras onde as pessoas são mais conhecidas pela alcunha do que pelo nome próprio. E não sei porquê, mas, na minha terra era comum as alcunhas serem nomes de santos. Também não porque os personagens fossem mesmo santos…

O que é certo é que a alcunha, em alguns deles assentavam “como uma luva” e ficavam durante gerações. Havia S. Pedro, S. Macário, S. Neutel e ainda outros da “ Corte Celeste” muito bem representada, naquela aldeia.

  1. Neutel era um Santo, cuja romaria, se fazia quase toda a pé. Sem transportes públicos com frequência e ainda onerosos para a bolsa das pessoas. Estes saiam de casa de madrugada e percorriam os quilómetros que separavam do cimo do monte, a pé.

A capela ainda lá está, embora hoje com romaria muito mais comercializada, com cheiro a frango assado e farturas. As pessoas já não levam o farnel feito com arroz de ervilhas, coelho frito e pão-de-ló amarelinho, feito com ovos da capoeira que as galinhas punham depois do papo cheio de milho, também, ele colhido no Verão e seco na eira.

Como já disse, subia-se a Serra a pé. Dizem que S. Neutel é protector dos porcos. E como os criavam também tinham que pedir protecção ao Santo. Não fossem eles morrer. Se o meu porquinho não morrer, para o ano volto cá.

A promessa para o próximo ano era feita logo ali, ainda antes de chegar ao cimo do monte e ainda não se tinha pago a promessa deste ano. Era uma festa! As pessoas deslocavam-se em ranchos. Depois cantava-se. Cantigas inocentes, tão inocentes como as próprias pessoas que as cantavam.

Havia um homem, de alcunha Dom Carlos que prometeu levar ao Santo, um pão-de-ló, assente num braço, em ângulo recto. O bolo foi entregue, mas, segundo me contaram, ficou com o braço aleijado do esforço que fez e de muitas horas sem se mexer.

Já de volta ao local onde se comercializavam as loiças e barros, havia que comprar uma cântara ou caçoila. Romaria, sem recordação, não é romaria que se preze. Havia quem esperasse o ano inteiro para se abastecer de caçoilas, pratos e cântaras Depois de bem-acondicionadas em cestos ou canastras faziam o trajecto a pé, de volta a casa. Não raras as vezes, no caminho tropeçavam numa pedra e… lá se fazia tudo em cacos.

Chegados ao fundo da Serra, o bailarico. Ah! O bailarico! As mães vigiavam as filhas, sentadas num banco ou em pé junto da roda que a concertina animava. As mãos das raparigas e rapazes entrelaçados e ouvindo em surdina, juras de amor que nem sempre se concretizavam. O baile era o corolário da romaria. Lá, já em desoras alguém se lembrava de “armar” zaragata. A primeira paulada era no candeeiro que mesmo com fraca luz, dava para iluminar os rostos corados das pessoas. Depois era a confusão geral, com gritos, chamados das mães pelas filhas que, entretanto, fugiam da confusão.

Os S. Pedro eram figuras constantes dessas romarias e da paulada. Não faltavam a uma só. É festa, é festa! E na festa bebe-se, e bem! E se eles gostavam!

Pois bem. Como trabalhavam na terra, também trabalhavam lá em casa. Sol a Sol, cavavam, semeavam e colhiam. Logo de manhã, antes de iniciarem o trabalho rural, juntavam-se os homens a algumas mulheres, à porta da cozinha para o “mata-bicho”, que consistia num copo cheio de aguardente, de alambique que eles algumas vezes também faziam em casa do meu pai.

A minha mãe era quem, quase sempre fazia esse serviço, de dar de beber a aguardente.

Um dia para arreliar o S. Pedro, trouxe, junto com a garrafinha, o copo mais pequeno que encontrou. O homem estendeu a mão, pegou no copo, virou-o de todos os lados, voltou a olhar e virando-se para a minha mãe perguntou:

– Comadre, tem por aí um cordel?

– Tenho. Para quê? perguntou ela.

– É para atar o copo. Tenho medo de o engolir!


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