13 de Outubro de 2024 | Quinzenário Regional | Diário Online
PUBLICIDADE

NATÉRCIA MARTINS

Maria

7 de Outubro 2023

Maria foi passar as férias a casa dos avós, na aldeia. Já lá tinha estado com os pais, mas não com a liberdade com que foi agora. Agora, sozinha, podia divertir-se à vontade.

Maria, com os pais sempre a reprimi-la. Não mexas aí! Podes magoar-te. Não vás para a rua. O gato tem pulgas, o sol está uma brasa! Maria refugiava-se nos jogos de telemóvel. Não via hora de ir para casa. O tempo não passava.

Ah! Agora foi bem diferente. Sozinha! Ela sabia que os avós eram pessoas especiais. Claro que eram.

Admirou-se quando viu a panela de ferro em cima da trempe, na lareira com as cavacas a crepitar lançando fagulhas que se assemelhavam a estrelas cadentes. Os cheiros! O cheiro da terra e dos frutos. Cavar a terra, regar as plantas. Os cachos dourados ou pretos que fazem o vinho que ferve no lagar ou nas pipas. A colheita das espigas do milho, com os bagos a fazer carreirinha, a água a correr no ribeiro a escorregar nos seixos cantando os segredos que só a água sabe.

Andar descalça nesse mesmo riacho com os pés molhados e as sapatilhas a fazer “ chap-chap”. As cegarregas, em dias de calor a cantar nas árvores. Os “luzecus” ou pirilampos com as lanternas acesas nos traseiros mortinhos por acasalar. Nem a sineta da capela escapou. O badalo num vaivém em dia de missa.

O cheiro da sopa de couve com feijão que se espalhava pela sala. O forno da broa que nunca tinha visto e parecia o inferno com o brasido lá dentro. A avó mexia com a vara a que chamava roleiro. Depois limpava com um “vasculho” feito de fetos verdes. A broa saía a fumegar pedindo uma fatia de queijo que a avó fazia com o leite tirado da cabrinha ainda no curral.

O cão preto, raça Labrador, que conduzia o rebanho sabendo exactamente por onde seguir.

Choveu. Os pingos grossos batiam no pó fazendo pequenos buracos. Mas tudo isso não importou.

Havia festa e Maria não perdeu nada. Viu as pessoas que faziam fila atrás do andor do santo. Um santo alegre e maroto que lhe piscou o olho sem ninguém ver. O santo empoleirado no cimo do andor rodeado de flores. Os mordomos vestiam opas vermelhas. Foguetes estouravam no ar. Primeiro Maria teve medo. Depois gostava de os ver seguindo o rasto deixado pelo fumo que se desfazia nas nuvens.

No adro, largo bem grande, jogou-se ao pião, à malha, saltou-se a corda e até se fez um bailarico abrilhantado por um acordeão que ali apareceu para a festa.

O pião! Maria também aprendeu e rodava direitinho fazendo inveja a alguns rapazes. A malha que é um disco de ferro a rodar por cima das cabeças, jogado por homens mais idosos, a derrubar a “marca” de madeira uns metros mais à frente. Nas esquinas das casas brincava-se às escondidas e à apanhada. Aprendeu a jogar à bola. A bola, que tantas vezes viu rolar, sem lhe poder ir atras. Ah! Isso era dantes. Agora? Quero lá saber! Que se lixem as sapatilhas. Saltava à corda e corria até ao fundo da aldeia. Havia sempre alguém que a acompanhava.

Maria sentou-se no degrau de casa da avó. Era noite de lua cheia. E ela lá em cima pendurada, redonda, bem grande. Maria nunca tinha visto a lua assim. Na cidade não se dá importância a essas coisas. Há muita luz nos candeeiros na rua. Ah! Ali não. A lua em todo o seu esplendor apresentava manchas na superfície. Que seria?

Então a avó que também veio sentar-se no degrau contou que havia uma lenda que já a avó dela também contava. Era um homem não se importando com o dia, foi cortar silvas, ao domingo. Para castigo ainda hoje lá está com a forquilha e as silvas, na face redonda da lua. Entretanto o gato veio aninhar-se no seu colo. Como era fofinho! Maria aconchegou-o melhor. A cauda, parecia um espanador e varreu-lhe a face.

Ia para a cama cansada, não sem se deliciar com um prato de sopa bem “adubada” com azeite que a avó deitava na panela. Dormia e acordava a ouvir o cantar afinado de um galo mais madrugador. O padeiro também deixava pão e fazia chiar os travões onde era mais inclinado e com pedras a arreliar o dono da carrinha.

Ficava na cama com o cheiro a alfazema nos lençóis que a avó teimava lavar no ribeiro.

As férias foram tão preenchidas que enquanto guardava a roupa na mala, viu lá ao fundo, poisado na mesa o telemóvel já sem bateria. Esqueceu-se dele? Pois! Não foi preciso. A casa da avó é a casa da avó. Recheada de coisas que não havia na cidade grande.

Rumou a casa com o coração cheio e a cabeça também. Para o ano volto. Ela bem sabia que os avós eram pessoas especiais. Claro que eram!


  • Director: Lino Vinhal
  • Director-Adjunto: Luís Carlos Melo

Todos os direitos reservados Grupo Media Centro

Rua Adriano Lucas, 216 - Armazém D Eiras - Coimbra 3020-430 Coimbra

Site optimizado para as versões do Internet Explorer iguais ou superiores a 9, Google Chrome e Firefox

Powered by DIGITAL RM