A Pensão Girassol ficava bem situada no meio da avenida, perto da rotunda que fizeram para os lados das ruas de baixo.
A rotunda era nova. Plantaram árvores e colocaram bancos de jardim. No meio, a estátua de um homem que ninguém conhecia.
Dizia-se que tinha sido nobre e oferecido muitas terras onde construíram a avenida.
Grande benemérito. Foi por isso que lhe erigiram aquela estátua de bronze. Poiso de pássaros e fungos. A vedete do bronze escorregava por ele como que a pintar as rugas e pregas do fato.
A Pensão Girassol abrigava toda a espécie de pessoas: viajantes, trabalhadores, pedreiros e velhos.
A D. Emília cantava todo o dia a canção: “Ó tempo volta p’ra trás. Um canto lúgubre, como um lamento.
Não tinha família por perto. Um filho visitava-a uma ou duas vezes por ano. E ela cantava, cantava sempre, e de tanto cantar transformou a melodia original, a seu belo prazer. Afinal não interessava mesmo nada, que a música fosse igual a que o António Mourão cantava.
O Sr. Eusébio, homem magro e meio curvado com o peso dos anos.
Hóspede há tantos anos que fazia parte da família, da mobília e também dos hóspedes.
Quando novo, fora para lá. A fábrica era perto e dava jeito. Não tinha despesas extra e para quem ganhava pouco, aquela pensão era o ideal.
Não constituiu família. Nunca teve tempo para pensar nisso e quando pensou já não valia a pena: era velho demais.
Sentava-se num cadeirão junto da janela e cismava. Gostava do pôr-do-sol no Outono e da chuva no Inverno.
Falava com o papagaio colocado na gaiola verde ao fundo do corredor.
Os outros hóspedes trabalhavam. Saíam de manhã, regressavam à noite e de tão cansados não davam por estas estranhas criaturas.
Na Pensão Girassol, “aterrava” por vezes uma senhora bastante idosa a quem todos chamavam Menina Júlia, gente fina mas estranha. Dizia que se o velho falava com o papagaio, ela falava com os animais, os pássaros e até com as flores.
Quando passava na rua ou nos corredores da pensão olhavam-na e apontavam o dedo à cabeça: sinal de “tolinha ou maluquinha”.
Da janela do quarto, sempre o mesmo, da pensão, via a estátua, lá em baixo, na rotunda. Ficava horas a olhar. De vez em quando ia até lá e sentava-se no banco bem de frente à estátua.
Falava sozinha, diziam. O que dizia? Não se sabe
Quando a Menina Júlia e o velho se encontravam, engalfinhavam-se. Ela mandava-o falar com o papagaio e ele mandava-a falar com a estátua. Ela ficava a olhar e uma lágrima rebolava no rosto enrugado. Ninguém sabia o porquê.
Um dia, quando, numa tarde de sol, a Menina Júlia, sentada no banco da rotunda, falava para si ou para a estátua, o velho Eusébio, seguiu-a devagarinho. Escondeu-se atrás do banco e ouviu:
– Vês? Todos saíram de casa e seguiram as suas vidas. Um a um. Casaram, morreram ou foram morar para outras cidades. Fiquei eu e tu!
Eu, quando a saudade aperta venho para esta Pensão. Assim fico mais perto para te ver. Vou matando saudades, até ao dia em que te for fazer companhia. Lembras-te? Os teus braços no meu pescoço, na minha cintura. Um beijo ao adormecer e tu ainda entras nos meus sonhos. Sabes? Nos meus sonhos tu entras devagar, vogando num longo mar de desejos e os teus braços apertam-me e eu perco-me neles.
No frio da noite, em cada solidão do silêncio que há à minha volta, de tanto pensar, dou por mim a perder-me, mais uma vez nos teus braços.
Ainda fazes parte dos sonhos da minha já longa vida.
O velho Eusébio, percebeu que o homem de bronze tinha sido o marido da Menina Júlia e era para conversar com ele que ela de vez em quando “aterrava” na Pensão Girassol. Agora também ele tinha um segredo!
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