Cada vez me convenço mais que esta velha máxima e tão verdade. Só se vive uma vez. E mesmo assim todos deixamos para os que aí vêm a nossa pegada.
Com mais ou menos actividades é a nossa pegada que ninguém é capaz de apagar.
Ela nasceu na cidade, mas apaixonada por um homem tornou-se numa mulher que sabia, foi aprendendo, tudo o que se faz na terra. A terra em que sujamos as mãos, plantar couves ou semear milho. Tudo isto e muito mais aprendeu pela paixão que sentia pelo seu homem, que ligava muito pouco a isto. Eu vi-a muitas vezes sentada num caixote vazio, a “cortar” batatas, coisa que eu também não sei fazer. A terra não me chamou e eu não fui.
Pegava na navalha ou faca bem afiada e sabia como cortar pelo rebento que depois na terra ia dar novas batatas. Sustento da casa. Assisti muitas vezes a tratar do vinho nas pipas bica aberta, que depois de cozido, ia levar ao pessoal num garrafão e copo que dava para todos.
Na mesa da cozinha, que era grande, tão grande a mesa como a cozinha, havia sempre gente a comer um prato de sopa que no interior de um país atrasado e com fome fazia muita diferença. Ia espreitar as bolsas que os cachopos da escola levavam para o almoço e muitas vezes se deparava com um naco de broa e uma sardinha petinga frita. A ordem era sempre a mesma: vai lá a casa e come um prato de sopa.
Com os trabalhadores da quinta era o mesmo. E quando ela ia coscuvilhar no cesto ou bolsa de pano, sabiam de antemão que era para saber se traziam qualquer coisa capaz de comer. O Sr. Joaquim, homem já velho e sem qualquer fonte de rendimento que não fosse a enxada, quando a via aproximar, queixava-se: a mulher não pôde fazer nada para eu comer. Apanhei uma fatia de broa e um naco de presunto salgado. A resposta era sempre a mesma: vá lá a casa e coma um prato de sopa.
A criada, na altura, queixava-se que o fogão de lenha lhe queimava a barriga e não fazia outra coisa. Uma panela de sopa todos os dias. Então ela dizia: sou eu que te pago o ordenado, as couves e o feijão são meus e até o azeite é das minhas oliveiras. Portanto…
Se houve gente que se aproveitou disto? Ah! pois houve. Mas já quase todos destas pessoas pagaram as suas contas a Deus. E é por tudo isto que eu penso: só se vive uma vez.
Hoje já sou mulher velha, penso quantas lágrimas terão corrido dos olhos castanhos talvez com saudades da sua cidade. O amor falou mais alto.
Arrependida? Talvez não. Ela que viu o filho ir para a tropa e mais tarde rumar ao Ultramar, sem a certeza que voltasse. Um filho rebelde que não dava ouvidos senão aos seus próprios. A filha também saiu daquela aldeia encravada na serra para fazer o seu curso médio, na cidade grande.
Tudo isto dói a uma distância de cerca de sessenta anos. Ela desceu ao nível dos trabalhadores da quinta, sem perder o seu estilo de vida: menina da cidade.
Ela sabia distinguir a azeitona gafa da saudável e ia ao lagar saber quando era a sua vez de fazer o azeite. Provava-o da “fonte” e ele era de boa qualidade. Só isto? Mais. Muito mais fez dela a mulher única que só viveu uma vez, que se apaixonou pelo marido, pela terra e por toda aquela gente com quem conviveu durante anos a fio.
Grande Mulher!
Como todo o Ser Humano a sua hora chegou. No funeral havia flores, muitas flores e muita gente a quis acompanhar à última morada. Gente que chorou lágrimas, de verdade, porque a qualquer uma daquelas pessoas houve, da sua parte, um carinho ou palavra amiga ou mesmo um prato de sopa.
Os tempos mudaram e as pessoas também, mas o passado não se pode apagar e continuo a dizer: só se vive uma vez.
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