“Cheira a m…! Cheira tão mal que parece que vivo numa pocilga”, lamenta, sem contemplações nem cuidados verbais, Isilda Barros, enquanto se manifestava junto com outros moradores das localidades de Mogadouro de Cima e de Baixo, Vale dos Carros, Vale de Avessada, da freguesia de Santiago da Guarda, e também da Lapa (lugar partilhado entre os municípios de Ansião e Pombal), em frente à Câmara Municipal de Ansião, no passado dia 10, contra um problema de maus cheiros e ruído que dizem provenientes de duas empresas localizadas em Vale de Carros e Lapa, nomeadamente, a BioSmart e a José Maria Mendes e Mendes, Lda.
A residir “mesmo em frente” a uma das empresas em questão, Isilda Barros revela que “as noites são um verdadeiro inferno, tenho de dormir de máscara porque o cheiro é insuportável, fico com o nariz a arder e a garganta a queimar”. Aquele cheiro “entra dentro de casa e não temos descanso”, sem esquecer o “barulho que fazem os camiões que transportam resíduos noite a dentro”. Reformada de França, a manifestante explica que “passei a vida a trabalhar para ter algum conforto e agora que vim para aqui comecei a viver num autêntico inferno”. A filha quando vem a Portugal “diz-me: Mamã não se pode viver aqui, como queres que venha mais vezes visitar-te? É triste, muito triste”.
“Estou contaminada”
Dentro de todos os constrangimentos que revela, o que mais evidencia são “os problemas respiratórios”, assumindo que “tenho provas de que tenho problemas pulmonares desde que vim para aqui viver: os médicos até me perguntavam se fumei muito e respondia que nunca fumei na vida”. “Tenho os pulmões destruídos e estou contaminada, aquele ar provoca-me tanta tosse que tenho sangue na expectoração”, lastima.
Também Helena e Celeste, manifestantes e habitantes nas proximidades dos empreendimentos, se queixam do “cheiro nauseabundo”, da “fraca qualidade de vida” e dos “problemas de saúde”. “Estender a roupa na rua está fora de questão: já me aconteceu de estar a passar a roupa a ferro e de sentir um cheiro tão mau que tenho que meter a roupa toda a lavar de novo”, e nem a agricultura escapa. “Quando anoitece o meu coração fica triste: porque é de noite que estão a queimar ainda mais”, denunciam.
“Tenho medo de comer os legumes que planto no quintal, porque têm um sabor esquisito e um cheiro muito característico: passo as alfaces por várias águas e deixo-as um bocadinho com vinagre, ou com umas gotas de lixivia, para desinfectar”, realça. “As uvas não se podem comer, a azeitona absorve aqueles químicos que andam no ar e o vinho também sabem mal”, contam as manifestantes enquanto explicam que “há dias em que é um cheiro a azoto que até os olhos ardem”.
“Só queremos que cumpram as leis”
“Não estamos contra as empresas, e até dizem que queremos estragar os postos de trabalho e prejudicar as empresas, mas isso não é verdade, só queremos que cumpram as leis, que usem filtros de purificação do ar, como são obrigadas a ter, ou que mudem as instalações para outro local, para longe das habitações”, revelam os manifestantes.
“Vivemos no campo, mas estamos confinados a casa, e mesmo assim vivemos mal, porque o mau cheiro entra pela canalizações, pelas chaminés da lareiras e por todo o lado, e agora com o Verão a chegar começa o problema das moscas, que são uma praga impossível de controlar”.
E se o mau cheiro é uma das principais razões para o descontentamento destas populações, também o ruído e o mau estado das acessibilidades viárias é outra das questões que levantam. João Filipe Freitas, a viver a escassos metros de uma das empresas em questão revela que “naquela estrada nem deviam passar camiões, mas passam dezenas, diariamente: as instalações estão situadas numa zona onde é difícil a circulação de pesados, uma parte da estrada não está alcatroada, o que faz com que no Verão seja uma nuvem e de pó e no Inverno um lamaçal”.
Resíduos enviados para análise
Os manifestantes denunciam ainda que “os camiões não levam as cargas cobertas, o que faz como que os resíduos transportados caiam e fiquem dispostos na estrada” e revelam que “amostras desses resíduos já foram recolhidos e enviados para análise”, pelo que “estamos a aguardar os resultados”.
Em jeito de lamento, Helena explica que vai “passear o cão de máscara” e outra manifestante questiona, “se nas cidades as pessoas que vão passear o cão têm que limpar os dejectos, ou levam multa, por que razão é que os camiões deixam aqui cair o lixo e ninguém faz nada?”.
João Filipe Freire assume que tem “vergonha de convidar pessoas para minha casa”, aliás, “temos uma piscina no quintal, para os miúdos, que nem utilizamos porque o cheiro é insuportável e as moscas são uma praga incontrolável”. “No Verão, gostávamos de fazer algumas refeições no exterior da residência, mas não podemos”, afirma.
O morador alerta ainda para o facto de que os “níveis de nitratos nas águas subterrâneas, na zona dos aviários, estão elevadíssimos, e há análises que o comprovam, águas essas que se infiltram nos solos e nos poços e contaminam tudo o que é cultivado, ou seja, as pessoas têm medo de comer o que cultivam e nem sequer podem fazer rega com a água daqueles poços”, apontando a situação com “um caso de saúde pública que urge resolver”.
Queixas antigas
As queixas são antigas mas a abertura de uma consulta pública pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), no âmbito da legalização e ampliação de uma das empresas despoletou a acção dos populares.
“É a nossa última oportunidade e temos de fazer ouvir a nossa voz, porque até agora nada foi feito”, esclarece Suzy Rodrigues, manifestantes e representante dos moradores, que lamenta os constrangimentos causados por estas unidades.
Para a porta-voz, “a situação também se agravou após os incêndios”, uma vez que “as árvores que por ali existiam acabavam por filtrar um pouco o ar”, no entanto, “como agora está tudo descampado torna tudo ainda pior”, lamenta.
“Ao lado da população”
Durante a manifestação, que juntou cerca de duas dezenas de populares em frente à Câmara Municipal de Ansião, António José Domingues, presidente da autarquia e o vereador responsável pelo pelouro do Ambiente, José Brás, ouviram as críticas dos moradores e deixaram a mensagem de que “o município está do lado da população”, frisando que no que diz respeito ao estudo de impacto ambiental em curso, “a câmara vai-se pronunciar na consulta pública. Estamos a reunir os pareceres de várias divisões e vamos fazer um parecer final que será enviado à APA, que reflecte, no fundo, aquilo que são as preocupações das populações e do próprio Município. Estamos de acordo com as populações e também queremos que a empresa seja legalizada e que cumpra as regras”, garantiram os responsáveis.
Para o presidente da Câmara de Ansião, esta é uma “é uma questão que nos preocupa obviamente e em que estamos a trabalhar desde que aqui chegámos, realçando o papel da autarquia na “divulgação da abertura da consulta pública para que todos se pudessem pronunciar”.
Contactado pelo JORNAL TERRAS DE SICÓ, o Grupo NOV Ambiente & Energia, que detém a empresa BioSmart, assegura que o empreendimento não é a origem do odor, uma vez que “essa unidade está dotada de uma tecnologia moderna e avançada, em circuito completamente fechado”. Onde o “processo de compostagem é feito em túneis herméticos com passagens de ar forçado para filtros específicos, especificamente para controlo dos odores evitando a sua dissipação. As unidades da BioSmart, cumprem a legislação em vigor e são constantemente auditadas pelas entidades oficiais, garante da qualidade e cumprimento das melhores normas ambientais.” Carlos Conceição, CEO do Grupo NOV, refere ainda que “não existem matérias ou substâncias perigosas na unidade e que a empresa não labora durante a noite”, tendo um “horário de trabalho diurno, e afixado na entrada, pelo que não registamos qualquer movimento de viaturas ligeiras ou pesadas após esse horário”. De acordo com o responsável, e “no âmbito da nossa política de portas abertas, temos endereçado convites a várias pessoas e entidades a visitarem as instalações para poderem comprovar que os odores fortes de que se queixam têm outras origens” e que estão “ao dispor das entidades, da indústria e da população, para dar nota transparente de todas as suas práticas ambientais”. Também contactada, a empresa avícola José Maria Mendes e Mendes, Lda. não prestou qualquer esclarecimento até ao fecho da edição impressa.
ANA LAURA DUARTE
[NOTÍCIA DA EDIÇÃO IMPRESSA]
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