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NATÉRCIA MARTINS

Velhas histórias

3 de Fevereiro 2023

A minha avó era uma senhora de espírito muito aberto e muito avançado para a época.

Nasceu antes do século XX. Viveu nele e morreu no dia dos meus anos. Mulher corajosa, pois, criou os filhos sozinha e pô-los a estudar. Todos tiraram cursos superiores. As raparigas ficavam somente por saber ler e escrever. A minha tia, irmã do meu pai, tocava piano. Diziam que muito mal, mas para mim tocava maravilhosamente as músicas da época.

Fui criada com as duas e o meu irmão que mais tarde se juntou a nós.

No meio da serra e sem luz eléctrica, não havia muito que fazer à noite. Escolhia-se feijão seco que a minha avó, marota, e com um” foi sem querer” misturava tudo. Quando se lhe pedia uma história tinha sempre alguma na ponta da língua. As vizinhas eram sempre as mesmas. Hoje quando estou mais “em baixo”, olho para a mesa redonda que hoje é minha e recordo os serões passados em seu redor. A braseira cheia de brasas vindas do lagar de azeite onde a fornalha ardia o dia todo.

Elas apareciam, de mansinho e sentavam-se.

A criada, na cozinha arrumava a loiça do jantar apressada porque não queria perder a história que se ia formando na cabeça da minha avó.

Nunca cheguei a saber se as tinha lido ou se as imaginava. Contava as-sempre diferentes sendo, sempre a mesma história. Contava e recontava e nós ouvíamos com o mesmo entusiasmo como se fosse nova. Fartinhas de ouvir a história que lá vinha, mas quem conta um conto acrescenta um ponto, E ela era mestra nisso.

A senhora Guilhermina era sempre a primeira a chegar, trazia com ela uma filha meio deficiente, mas que delirava com os olhos muito abertos absorvendo cada palavra, cada história.  Depois a senhora Matilde e por fim a senhora Maria do Leitão com as mãos geladas por baixo do avental.

Eu, pequena, no meio delas com as pernitas quentes e as mãos também.

A conversa não interessava muito. Elas queriam era a história e o quentinho da braseira.

Uma dessas noites contou mais uma vez, que passou por ali um pobre a pedir esmola. Sentou-se no banco dos lagareiros frente à fornalha e disse que viu um homem montado num cavalo branco a galopar, e disse – lhe que fosse a um poço no fundo da quinta e tirasse de lá uma bolsa cheia de dinheiro. Eram moedas de oiro, mas que não dissesse nada a ninguém, pois se dissesse morria.

Como o velho não queria morrer calou-se, mas um vizinho espreitou e viu tanto dinheiro e pensou em o roubar.

Neste entretanto, ia uma cobra a passar e o vizinho vendo ali quem o podia matar pediu à cobra que se enrolasse com força. A cobra assim fez.  Enrolou, até que já quase morto, o dono do dinheiro, disse à cobra que se ela o deixasse lhe dava a filha mais velha em casamento.

A cobra, que não era mais que um príncipe encantado, vítima de um feiticeiro que o transformou nesse bicho medonho.

Chegados a casa a filha do homem, obedecendo ao pai, aprontou-se para o casamento.

Mas… (há sempre um mas) o pai teve de ir resolver um problema à aldeia vizinha e foram os dois: o príncipe e o pai da menina. A notícia do dinheiro foi – se sabendo e havia mais quem o cobiçava.

Chegada a noite os ladrões aprontaram-se para lhe assaltar a casa. O homem e o príncipe vieram a tempo e o príncipe valendo-se do feitiço transformou-se em cobra e enrolou-se ao cabecilha dos ladrões e matou-o.

O rei, sabendo disto, os reis sabem sempre tudo, mandou- o chamar. Queria que a filha casasse com ele. Um problema: duas meninas e um príncipe. E agora?

O primeiro disse á mulher que fosse a casa e procurasse uma gaita de foles que lá tinha.

A mulher assim fez. O homem começou a tocar. O rei fez um grande baile logo ali. Ele que não dançava há muitos anos. Era um rei triste.

Dançou toda a noite.

A filha do dono do dinheiro não se importou, pois, logo no baile se aprontou um outro rapaz para casar com ela. O rei gostou e até foi o padrinho.

São estas histórias tão simples como simples eram as pessoas ali sentadas no calor aconchegante da braseira, Histórias contadas e recontadas sempre de forma diferente, mas, no fundo eram sempre as mesmas com reis, rainhas, ladrões, moedas de oiro e o que se imaginava na altura.

Entretanto a senhora Matilde deixou cair a cabeça e dormia a sonhar, talvez, com os intervenientes desta história cujo fim ela nunca ouvia porque adormecia sempre.

E é assim que as pessoas não morrem na nossa imaginação. Ficam a saudade e as histórias.


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