Gabava-se o compadre São Pedro que nunca bebera água desde o seu nascimento há uns 60 ou 70 anos, tantos quantos deveria rondar na altura.
Claro que São Pedro era alcunha. Já o pai tinha o mesmo nome e o neto, que ainda é vivo, também o herdou. Família, onde o gasto de água era mínimo, até porque carregá-la aos ombros ou à cabeça seria, na época e mesmo agora, tarefa penosa. Portanto, havia que poupar. O vinho ou aguardente, tinha um sabor bem mais agradável. Opiniões!
Há terras onde as pessoas são mais conhecidas pelo alcunha, do que pelo nome próprio. E não sei porquê, mas, na minha terra era comum as alcunhas serem nomes de santos. Também não, porque os personagens fossem mesmo santos ….
O que é certo é que a alcunha, em alguns deles, assentava “como uma luva” e ficava durante gerações.
Havia São Pedro, São Macário, São Neutel e ainda outros da “Corte Celeste” muito bem representada naquela aldeia.
São Neutel era um santo cuja romaria se fazia quase toda a pé. Sem transportes públicos com frequência e ainda onerosos para a bolsa das pessoas. Estes saiam de casa de madrugada e percorriam os quilómetros que separavam do cimo do monte, a pé.
A capela ainda lá está, embora hoje com romaria muito mais comercializada, com cheiro a frango assado e farturas. As pessoas já não levam o farnel feito com arroz de ervilhas, coelho frito e pão-de-ló amarelinho, feito com ovos da capoeira que as galinhas punham depois do papo cheio de milho, também, ele colhido no Verão e seco na eira.
Como já disse, subia-se a serra a pé. Dizem que São Neutel é protector dos porcos. E como os criavam também tinham de pedir protecção ao Santo. Não fossem eles morrer.
– Se o meu porquinho não morrer, para o ano volto cá.
A promessa para o próximo ano era feita logo ali, ainda antes de chegar ao cimo do monte e ainda não se tinha pago a promessa deste ano. Era uma festa! As pessoas deslocavam-se em ranchos. Depois cantava-se. Cantigas inocentes, tão inocentes como as próprias pessoas que as cantavam.
Havia um homem, de alcunha Dom Carlos que prometeu levar ao Santo, um pão de ló, assente num braço, em ângulo recto. O bolo foi entregue, mas segundo me contaram ficou com o braço aleijado do esforço que fez e de muitas horas sem se mexer.
Já de volta ao local onde se comercializavam as loiças e barros, havia que comprar uma cântara ou caçoila. Romaria, sem recordação, não é romaria que se preze. Havia quem esperasse o ano inteiro para se abastecer de caçoilas, pratos e cântaras Depois de bem-acondicionadas em cestos ou canastras faziam o trajecto a pé, de volta a casa. Não, raras as vezes, no caminho tropeçavam numa pedra e… lá se fazia tudo em cacos.
Chegados ao fundo da serra, o bailarico. Ah! o bailarico! As mães vigiavam as filhas, sentadas num banco ou em pé junto da roda que a concertina animava.
As mãos das raparigas e rapazes entrelaçadas e ouvindo em surdina, juras de amor que nem sempre se concretizavam. O baile era o corolário da romaria. Lá já em desoras alguém se lembrava de “armar” zaragata. A primeira paulada era no candeeiro que mesmo com fraca luz, dava para iluminar os rostos corados das pessoas. Depois era a confusão geral, com gritos, chamados das mães pelas filhas que, entretanto, fugiam da confusão.
Os São Pedro eram figuras constantes dessas romarias e da paulada. Não faltavam a uma só. É festa, é festa! E na festa bebe-se, e bem! E se eles gostavam!
Pois bem. Como trabalhavam na terra, também trabalhavam lá em casa. Sol a sol, cavavam, semeavam e colhiam. Logo de manhã, antes de iniciarem o trabalho rural, juntavam-se os homens a algumas mulheres, à porta da cozinha para o “mata-bicho”, que consistia num copo cheio de aguardente, de alambique que eles algumas vezes também fabricavam em casa do meu pai.
A minha mãe era quem quase sempre fazia esse serviço de dar de beber a aguardente.
Um dia para arreliar o São Pedro, trouxe, junto com a garrafinha, o copo mais pequeno que encontrou. O homem estendeu a mão, pegou no copo, virou-o de todos os lados, voltou a olhar e virando-se para a minha mãe perguntou:
– Comadre, tem por aí um cordel?
– Tenho. Para quê? perguntou ela.
– É para atar o copo. Tenho medo de o engolir!
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