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O sector da saúde está feito num 8

27 de Outubro 2022

Depois de uma crise económica e financeira, de uma pandemia e de uma guerra na Europa estamos feitos num oito no sector da saúde.

Há mais doentes, mais velhos e com mais doenças; nascem menos crianças a cada ano que passa; temos menos recursos humanos disponíveis no Serviço Nacional de Saúde, profissionais mais desmotivados, com recursos materiais e instalações mais degradadas, com subfinanciamento crónico evidente e má gestão óbvia. Perdemos a cultura organizacional do Serviço Nacional de Saúde. Uma fotografia preocupante no início desta década conturbada. “O relógio está a contar” escrevia o Dr. Fernando Araújo em Maio último, referindo-se à degradação na saúde.

A despesa do sector público da saúde teve sete anos negros. De 2011 a 2017 a despesa pública foi menor em cada ano comparando com 2010, mesmo com a recuperação iniciada em 2015. Como é que foi possível gastar em 2017 quase o mesmo que foi gasto em 2008? A despesa pública foi 11,7 mil milhões de euros em 2017 e 11,6 mil milhões de euros em 2008. Como é que é possível?!

Com ruptura de serviços de saúde, com esforço dos profissionais de saúde, com degradação de estruturas, com perda de recursos humanos mais qualificados e muita compreensão dos cidadãos utilizadores. Mas tem sido possível com a participação das famílias uma vez que gastaram quase mais mil milhões de euros, isto é, cerca de mais 22%, enquanto o Estado gastou menos 7% entre 2010 e 2017.

Ao mesmo tempo continuamos a ver envelhecer a população. De facto, é bom sinal haver mais pessoas a viver mais anos. Temos mais idosos. Mas também é verdade e natural haver mais doentes e, portanto, mais despesa no sector da saúde.

Os doentes oncológicos (com cancro) são naturalmente mais quer porque as pessoas vivem mais anos, quer porque sobrevivem mais à doença, uma vez que temos melhores meios de diagnóstico e de tratamento. Mas o doente com cancro é um enorme problema e vai ser ainda mais no futuro. Será necessário prevenir mais e diagnosticar melhor e mais precocemente. O rastreio oncológico foi um sucesso em Portugal nas últimas décadas. Mas a pandemia veio alterar a situação. A taxa de adesão aos rastreios é preocupante e a cobertura populacional é agora muito baixa. A última monitorização do rastreio oncológico publicada reporta a 2020, um ano particularmente difícil como se sabe devido à pandemia COVID-19. A comparação com os dados relativos a 2019 evidencia uma situação preocupante.

Em 2020 ocorreu uma enorme diminuição de cobertura populacional no rastreio de cancro da mama. Em 2019 foram rastreadas cerca de 345 mil mulheres e encontrados 1633 casos positivos. Em 2020 foram rastreadas pouco mais de 180 mil e verificaram-se 1053 casos positivos. Significa que em 2020 ficaram por diagnosticar cerca de 600 mulheres com provável cancro da mama.

No rastreio de cancro do colo do útero o panorama é semelhante. A taxa de cobertura populacional passou de 53% em 2019 para apenas 22% em 2020. Neste ano foram realizados cerca de 115 mil rastreios e foram encaminhadas para estudo complementar um pouco mais de seis mil mulheres. Em 2019 foram realizados mais de 253 mil rastreios e encaminhadas mais de 12 mil mulheres para consulta específica. Quer dizer então que nos faltaram cerca de seis mil potenciais doentes de cancro do colo do útero!

Em relação ao rastreio de cancro do colon e reto diria que a situação é ainda mais preocupante, mas com interpretação mais complexa. A taxa de cobertura populacional era ainda muito baixa em 2019: apenas 28% de população elegível foi rastreada (pouco mais de 400 mil pessoas). Mas baixamos para 15% (quase 217 mil pessoas) em 2020. Se estávamos mal pior ficámos! Os casos de testes primários positivos baixaram de 6800 para quase 4900 e as lesões identificadas em colonoscopia baixaram de 814 para 653.

O rastreio oncológico ficou, pois, muito atrasado em 2020. Em 2021 não teremos resultados muito melhores! Muito preocupante! Como é que podemos recuperar o atraso no rastreio oncológico? Qual é o plano estratégico?

O diagnóstico precoce conseguido com os rastreios oncológicos realizados nos centros de saúde tem vindo a ser reconhecido nos últimos anos. Mas com o atraso que temos, o prognóstico para estes doentes será inevitavelmente pior e o impacto é preocupante.

Como conseguiremos recuperar o atraso? Serão necessárias mais horas de trabalho, mais recursos materiais, mais meios técnicos e especialmente mais organização e melhor comunicação. Se nada fizermos agora teremos aumento de mortalidade por cancro e mais despesa em tratamento de doentes oncológicos. Uma tarefa política e técnica para os novos responsáveis do Ministério da Saúde.

Rui Nogueira

Médico

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