O sinal verde abriu e uma imensidão de gente projectou-se, na passadeira, para o lado oposto. Tanta pressa! Toda a gente com imensa pressa! O sinal verde tardou a abrir. Na multidão anónima quase choquei com um homem. Desviei-me como toda a gente faz e fui à minha vida. Mas o homem com o qual quase choquei estava do outro lado, no passeio.
Nunca o tinha visto por ali. Impecável no seu fato cinzento de corte perfeito. Cabelo meio grisalho.
Um olhar atravessou-me e penso que leu na minha cabeça todos os meus pensamentos. O homem não me saía da cabeça.
No dia seguinte precisei de fazer mais umas compras e fui até à cidade. Sentado num banco do jardim lá estava o homem no seu impecável fato cinzento. Parecia que tinha saído de um filme onde os actores estão sempre no seu melhor aspecto. Sem uma ruga na roupa, sem um pingo de chuva que faz uma nódoa na camisa impecavelmente azul-claro.
Seria eu que de tanto pensar já o via onde quer que eu estivesse? É que além do banco do jardim, também estava no bar onde ia beber um café, no cinema numa cadeira lá ao fundo.
Caramba! Já era demais.
Passaram uns dias e deixei de o encontrar. Que bom! Via-me livre de uma perseguição que não controlava.
Passaram-se dias e talvez meses. Deixei de o encontrar e pensar nele.
O meu trabalho embora não fique muito longe tenho de me deslocar de carro. Saio de manhã e regresso à tarde com a cabeça cheia do barulho das crianças depois de um dia de aulas. Trabalho que, embora cansativo, eu gosto. As crianças fazem-me esquecer qualquer coisa que no dia a dia não corre tão bem.
Saí de casa cedo como faço sempre, pois não gosto de chegar atrasada, mas a meio caminho, o que inicialmente eram pequenos chuviscos, foi-se intensificando formando-se tal tempestade que a estrada ficou inundada. A trovoada era de tal modo que todo o chão se rasgava como se quisesse engolir tudo. Não se via o alcatrão, a berma nem os riscos brancos que ladeiam e marcam o caminho. As luzes dos faróis do automóvel reflectiam-se e quase faziam ricochete. Não se via nada tal o nevoeiro provocado pela chuva. Mas eu lá ia andando devagar procurando não me desviar.
Sem que contasse à minha frente surgiu um camião e sem dar tempo de travar chocou com o meu carro de uma forma brutal. Tudo se estilhaçou. O barulho provocou uma onda ensurdecedora. O meu carro literalmente voou e ficou entalado entre duas árvores sem que eu pudesse sair dali. Fiquei presa e enclausurada, suspensa. Silêncio absoluto. Sem me mover, sem poder ver, sem poder chamar por socorro. No fundo da ribanceira que ali me pareceu o fundo do inferno.
Como sair dali? Do camião nem sinal de vida. A minha carteira desapareceu com o impacto do choque.
E eu ali sem ninguém que se apercebesse, pois a chuva e a trovoada ainda se intensificou mais. Todo o corpo me doía. As pernas presas com a lata do motor a cortar-me e a doer-me terrivelmente.
Quanto tempo fiquei ali? Não sei.
Quando abri os olhos vi pertinho do meu carro, um homem de fato cinzento que procurou o meu telemóvel, me estendeu a mão pelo vidro partido e me tirou dali. Entretanto chegaram pessoas e com elas o socorro.
O homem do fato cinzento ainda me aparece de vez em quando sentado no banco do jardim ou na cadeira do bar onde bebo o café. Cruzamo-nos na passadeira após abrir o sinal verde. Continuo sem saber quem é ou o que faz ali.
Nunca falámos, mas quando nos cruzamos sorri para mim. E eu gosto daquele sorriso, de lábios meio abertos a mostrar os dentes muito brancos. Gosto muito do seu cabelo grisalho.
Continuo a ir para o trabalho com o mesmo automóvel, passando pela mesma estrada quer faça chuva ou o sol. Não deixo de ter medo de que outro camião se atravesse no caminho, mas desconfio que tenho auxílio e socorro a tempo.
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