Sentada numa pedra, com a cabeça sobre os joelhos, esconde as lágrimas que lhe escorrem pela cara. Quando Maria da Piedade se levanta tem “uma visão de terror: ardeu tudo, fiquei com a casa e mais nadinha”. Aos 80 anos, confessa nunca ter vivido nada assim, “ainda não consegui dormir, tenho medo de estar sozinha e nem sei como vou viver daqui para a frente”. Os escassos metros que separam a casa do quintal são uma longa viagem no tempo, “não consigo esquecer aquele final de tarde, ainda ouço o barulho do fogo, parecia que o diabo tinha descido à Terra, e quando olho para isto só me apetece chorar, é um choque muito grande”. Perdeu um olival “de onde tirava um rendimento com a venda de azeite”, perdeu a horta “onde tinha um bocadinho de tudo” e nem as quatro galinhas que tinha num anexo escaparam à fúria das chamas que fustigaram o concelho de Alvaiázere e o território de Sicó na semana mais quente do ano, em meados deste mês.
Na localidade de Bemposta, na freguesia de Almoster, a reportagem do TERRAS DE SICÓ observou um panorama dantesco: uma vasta mancha negra, onde o ar é quase irrespirável e que em nada se assemelha à paisagem verde de há uns dias atrás. Agora são quilómetros e quilómetros de um cenário pintado de preto, que “vai demorar anos a recuperar”.
Mais à frente Jorge Silva pergunta ao vizinho pelos “porquinhos”. Fernando diz que nunca mais os viu, só teve tempo para lhes abrir a porta do curral. “Provavelmente morrerem a tentar fugir”, apesar de já ter “dado uma vista de olhos pelas redondezas, não há sinal deles. Nem deles nem de nada, porque já não há pássaros a cantar, nem há qualquer sinal de vida por estes lados”.
Horas de aflição
Depois de “horas de aflição”, Fernando vai trabalhar: “vou, mas levo uma carrinha com um depósito de mil litros de água e um motor”. Se não fosse esse reservatório, “podia ter sido ainda pior”, conta, “estava muito bem posicionado, mas tivemos azar: o vento mudou de repente e o fogo virou”. Agora tem “medo dos reacendimentos”, confessa.
“Acho que Deus estava lá em cima a olhar por nós”, acredita Jorge Silva, “foi um milagre não ter ardido tudo”. A casa conseguiu salvar-se, mas “o quintal e todas as alfaias agrícolas ficaram totalmente destruídas”. É tempo de “fazer contas à vida e de calcular os prejuízos”.
Depois de dias muito complicados, a manhã daquela sexta-feira parece calma. Junto a uma oliveira centenária está um grupo de soldados da paz a descansar. São mais de três dezenas, vindos de Oeiras, Moscavide e Lourinhã. O ar cansado e o semblante carregado não escondem a “noite complicada” que tiveram. “O importante foi salvar as pessoas”, não havendo registo de feridos ou de vítimas mortais.
“Estávamos completamente sozinhos”
Na aldeia de Quinta de Cipreste, na mesma freguesia, Sílvia Oliveira não esquece os momentos de “sofrimento e de total impotência” face às chamas que consumiram tudo o que estava à volta das casas. “Estávamos completamente sozinhos, não havia bombeiros ou viaturas para nos ajudar, ninguém aparecia, foi um inferno”. Para além do crepitar das labaredas ouviam-se “pessoas a gritar e a chorar”, desesperadas. “Só a freguesia de Abiul (Pombal) mandou meios, mesmo com todo o caos que eles também estavam a viver: fartaram-se de ajudar”, agradece.
Horas mais tarde, “depois de todo o perigo já ter passado”, Sílvia conta que “apareceu uma brigada da Guarda Nacional Republicana que me levou as minhas filhas: disse-lhes que já não havia perigo, que já tinha ardido tudo, mas mesmo assim o agente insistiu em levar as meninas”. Disseram-lhe que “não me podia obrigar a sair, mas que as meninas estavam, a partir daquele momento, sob a sua responsabilidade”. No entanto, “nem me sabia dizer para onde as ia levar, não eram daqui, não conheciam a zona”, garante.
Depois de vários telefonemas para os responsáveis locais, “fui informada de que estavam no Pavilhão Gimnodesportivo de Alvaiázere”, mas quando as quis ir buscar, “as estradas estavam cortadas e não conseguia passar para o centro da vila”. E mesmo sabendo que as filhas, de nove e 13 anos, “estavam bem e num lugar seguro, também sabia que estavam assustadas e rodeadas de pessoas que não conheciam”. Só conseguiu rever as crianças “na manhã seguinte”, remata.
“Nunca vou conseguir esquecer”
Maria de Fátima, de 69 anos, relata uma história semelhante em Almoster: perdeu dezenas de árvores e a casa da mãe. “Nasci e cresci lá. Agora é apenas uma ruína”, relembra “um pesadelo com tudo a arder”, só teve tempo de fugir. “Foram dias para esquecer, mas sei que nunca vou conseguir esquecer a aflição que aqui vivemos”, admite a mulher que viu o sítio onde cresceu ficar reduzido a cinzas.
Apesar de “já ter ardido tudo”, o pavor agora é “dos reacendimentos”, lamenta. E se a paisagem cor de carvão mostra uma parte do “inferno” que ali se passou, o “cheiro a queimado e o ar pesado” reavivam as memórias: “até respirar me custa”. Unidos por uma causa, os habitantes “ajudaram-se muito uns aos outros”. Afinal, “se não fosse assim, tinha sido muito pior, mesmo muito pior”.
O incêndio, que atingiu o concelho de Alvaiázere obrigou à evacuação de aldeias, destruiu três casas de primeira habitação e provocou ferimentos num bombeiro da corporação local, resultou do reacendimento de um fogo que deflagrou no vizinho concelho de Ourém.
Ana Laura Duarte
[REPORTAGEM PUBLICADA NA EDIÇÃO IMPRESSA]
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