O Piloto era um cão preto que havia em casa dos meus pais. Acompanhava o meu pai na caça. Não foi ensinado a trazer as perdizes à mão, mas ficava parado junto da caça morta por um tiro do meu pai ou do meu irmão.
O que gostava mesmo era da escola. A minha mãe dava aulas pertinho de casa. O cão ia com ela de manhã, ao início do dia. Nesse tempo as crianças levavam almoço que, na maioria das vezes se traduzia por um pedaço de broa e uma sardinha frita. O Piloto observava as saquinhas das merendas. Se lhe cheirava não fazia cerimónia em “atacar” a comidinha. Quando isso acontecia, a minha mãe repunha a merenda. Presunto ou chouriço dentro de outro pão. Quantas merendas destas foram ganhas à custa do Piloto, que ficava com a fama e algumas vezes com pouco proveito. Aquele cão tinha atitudes de humano. Se tinha ou não nunca o soubemos. Mas que tinha coisas de um ser humano não duvido.
Quando o meu pai vinha à tarde para casa o cão ouvia ao longe o motor do carro e corria disparado ao seu encontro. Numa lomba onde há um castanheiro, o meu pai parava o carro, abria-lhe a porta e o cão subia para o banco ao seu lado, sentava-se feliz da vida. O cão sabia sorrir quando lhe passávamos a mão pela cabeça. Arregalava os olhitos meigos a dizer: passa lá outra vez!
Certo dia demos pela sua falta de manhã. A minha mãe foi para a escola, mas o Piloto não apareceu. Não apareceu para o almoço. Ele que não falhava. Não apareceu para esperar o automóvel do meu pai à tarde. À noite não chegou para jantar. Ficámos preocupados. No dia seguinte também não apareceu. Foi aí que resolvemos ir ao pinhal onde era costume caçar. Não muito longe de casa. A vinha do Dr. Albano era farta de perdizes. Andámos toda a manhã a “bater” o mato e chamar por ele. Lá estava deitado com uma pata dianteira presa na armadilha que alguns caçadores furtivos usavam para apanhar raposas, que as havia por ali.
Todo o caminho foi feito a chorar. As lágrimas corriam-lhe no pêlo. Trouxemo-lo ao colo. Lambia-nos as mãos e os braços como um gesto de quem beija agradecido. Aquela pata nunca mais teve força. Corria, mesmo assim, pela quinta e sentava-se nos degraus da escada da minha avó. Ele e eu a ver o moleiro com os burros presos uns aos outros pela arreata com os foles do grão e da farinha em cima do lombo calejado. Era um cão já velho. O pêlo ruço pelo correr dos anos. Acompanhou o meu crescimento e o do meu irmão. Era da família. Filho da cadela da vizinha. Quando nasceu e abriu os olhos pequeninos e muito pretos, curiosa, fui espreitar. Gostava de ver todos a mamar. A mãe olhou-me e penso que me disse: “Leva-o contigo. É o mais bonito”.
Talvez tenha sido um cão igual a todos os outros. Para mim foi muito especial. Era o Piloto!
Brincava comigo enquanto o meu irmão aprendia a andar de bicicleta contornando os canteiros de violetas e o grande limoeiro da quinta. Ajudou-nos a crescer. Encharcava-nos quando se sacudia depois de um mergulho no tanque de rega. Ladrava quando tinha fome e não nos resolvíamos a ir almoçar. Percorria o lagar de azeite e dormia frente à fornalha onde a lenha crepitava. Deitava-se aos pés do Abílio Café, um pedinte que aparecia por lá no tempo da safra.
Um dia aconteceu o mesmo que acontece a quem já é velho: morreu! Morreu muito velho, cego e com pouca mobilidade. Foi a enterrar embrulhado num lençol na cova funda onde o meu pai plantou uma roseira. Nunca me vou esquecer do Piloto. O meu amigo de infância. Brincava comigo a correr na eira onde no Verão se estendia o milho e o centeio acabado de colher. Aí espalhávamos as molas da roupa de dentro do balde preso no cimo de um pau que servia de suporte à corda. A eira servia para pendurar a roupa. Era espaçosa e limpa quando não tinha grão a secar ao sol ou depois da debulha.
A vida continua. Todos seguimos rumos diferentes. O meu pai e a minha mãe faleceram, mesmo não sendo muito velhos ainda. A quinta também já não é nossa, mas a roseira continua no mesmo lugar como que a lembrar o Piloto.
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