A notícia chegou à aldeia como se fosse uma bomba: fria, bruta e dolorosa. Um automóvel vermelho capotara na auto-estrada e os bombeiros saíram do quartel com as sirenes ligadas. Ainda só se sabia que era gente da aldeia. Apenas isso. Ao ouvir as sirenes, Isabel estremeceu. Um pressentimento mau atravessou-a como um raio. Finalmente teve a certeza. Os bombeiros trouxeram a notícia. O automóvel vermelho capotado tinha um ocupante encarcerado que não foi possível salvar. Era Francisco. Um filho de gente da aldeia.
Isabel ouviu tudo como se a notícia que trouxeram não tivesse qualquer sentido. Não acreditava. Não era possível.
Francisco vinha ter com ela sempre que saía do trabalho. Namorados de há algum tempo. Rapaz de quase trinta anos, vizinho e trabalhador na fábrica.
Quase sem querer levou a mão à barriga. Apertou-a com força a reprimir o choro que mais tarde chegaria incontrolável, no escuro do seu quarto, entre os lençóis sem que os pais a ouvissem. Chorou toda a noite enquanto pensava que a sua vida perdera em poucos minutos todo o sentido. E agora? É que Francisco e Isabel, namorados, na festa da aldeia, dançaram, divertiram-se e namoraram como fazem todos os namorados. No meio de tanta paixão envolveram-se ao rubro e o que ambos desejavam, aconteceu. Mais noites e dias de paixão, se sucederam. Numa dessas noites, Francisco deixou no ventre de Isabel uma pequena semente que se iria desenvolver com o passar das semanas.
O pai de Isabel que ao olhar a filha se apercebeu, não recebeu a notícia da gravidez de forma pacífica. Não era homem dócil. Tinha fama de duro nas suas ideias e convicções.
Os filhos tinham-lhe respeito na forma de medo. Os vizinhos não se metiam muito com ele. Era um homem só. Aposentado de polícia, conservou a dureza de outros tempos.
Isabel chegava do trabalho e fazia o que era preciso. Os irmãos há muito deixaram a casa constituindo as suas próprias famílias. A mãe tentava afogar o desgosto com o trabalho. Absorvida no dia-a-dia chegava cansada e com pouca capacidade para pensar. A fábrica cansava não só o corpo como também o espírito. Isabel tinha saudades de Francisco e a sua barriga avolumava, avolumava.
A refeição da noite, única em conjunto, era feita em silêncio pesado, entrecortada por monossílabos dispersos. O pai quase não levantava os olhos do prato. Uma vergonha, para ele, a filha solteira e grávida de um homem morto. E ele que se considerava um pai austero e diferente dos outros. No fim do jantar, Isabel recolhia ao quarto e aí sozinha pegava na fotografia de Francisco e contava-lhe como o bebé crescia dentro dela. Ela “sentia” que ele estava ali. Não a abandonara, embora noutra dimensão. Todas as noites tinha uma novidade para ele. Contava-lhe o primeiro movimento do bebé dentro do seu ventre inchado. E as semanas passavam com lentidão. A lentidão habitual de quem anseia ver o rosto pequenino e o corpito frágil. O seu bebé que teria de criar sozinha. O pai cada vez falava menos. Muito menos, ruminando o desgosto de ver a filha mais nova, grávida e sozinha.
Finalmente, o dia do nascimento chegou. As dores apertavam cada vez mais. Isabel, acompanhada da mãe rumou à maternidade. As horas passavam. As dores aumentaram mais e mais. Com um grito um menino “chegou” rosadinho, pequenino, parecido com Francisco.
Isabel, depois de concluídas as operações do trabalho de parto, aconchegou o seu menino, que sôfrego, procurava o peito para a sua primeira mamada num peito de menina ainda firme e cheio de leite.
Mais uma vez chorou a perda de há nove meses. Devagarinho, muito devagarinho, lentamente, pela porta entreaberta entrou um homem. Era o pai de Isabel. Ficou imóvel olhando o menino. Era o seu neto. O silêncio e quietude durou uns segundos. Num gesto que ninguém lhe conhecera antes, pegou no bebé, aconchegou-o ao peito e com um beijo doce, deixou cair as lágrimas sobre o menino. O homem rude, orgulhoso e frio, estava rendido, ali, com o menino encostado ao peito, segurando-o com as mãos duras e calejadas.
Isabel, deitada na cama onde repousava depois do parto apenas semi-cerrou os olhos. Não quis que o pai se apercebesse que acordara. Assistiu muda. Não teria palavras, ou as que dissesse seriam certamente poucas e sem jeito. O pai sorriu, colocou o menino, de novo, junto da mãe e tal como entrara, saiu apressando o passo direito a casa.
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