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NATÉRCIA MARTINS

Um circo

7 de Maio 2021

Vou poucas vezes à minha terra, onde vivi até me casar. Vou lá de vez em quando, pois é lá, no Portugal profundo, lá bem entre as serras, que estão sepultados os meus pais.

Ainda me dói a alma quando lá vou. Foram alguns anos da minha já longínqua meninice. Aquele Portugal de que falo muitas vezes ainda me transmite saudade das pessoas e mesmo dos lugares por onde andei.

Fui lá e fiquei à conversa com um vizinho que sendo da mesma idade que eu, me acompanhava nas brincadeiras dentro da quinta. Corríamos feitos malucos atrás dos patos ganços que em contrapartida esticavam os pescoços a querer morder. O cão entrava em algumas brincadeiras. O meu irmão é mais novo. Também acompanhava mais como espectador, assim como a irmã do meu vizinho, meio amorfa, mas também servia.

Sentados no muro da casa dele contávamos por onde andam, neste momento, os nossos filhos e netos, quando devagarinho passou na estrada uma carrinha azul com um boneco pintado num dos lados.

Olhámos um para o outro e desatámos a rir com uma bem sonora gargalhada. Ambos nos lembrámos ao mesmo tempo. Pois claro, o circo!

Um dia à tarde entrou na aldeia uma carrinha com pessoas que traziam uma companhia de saltimbancos. Estacionaram no largo frente à igreja. Armaram uma tenda em círculo. Traziam entre outros elementos alguns animais.

Ambos, pequenos na altura, ficámos fascinados. Não era coisa que por ali parasse muitas vezes.

Com os olhos bem abertos fomos vendo as habilidades dos artistas. Um malabarista lançava bolas coloridas ao ar sem que elas caíssem.  Uma mulher torcia o corpo juntando os pés com os braços. Um equilibrista com uma cadeira nos dentes fazia rodar e toda a gente olhava com medo de que a cadeira caísse. Não caiu. O que nos fascinou, mesmo foram os palhaços. Estes faziam brincadeiras e mais brincadeiras, com água, farinha, ovos e não sei mais o quê. É que desde aí não vi mais nada. Imaginava-me a ser palhaço também. De noite sonhei com o circo.

No outro dia, logo que o meu vizinho chegou, falei-lhe de fazermos também um circo,

Eles faziam tudo com facilidade. Também seríamos capazes.

Iriamos treinar. O meu irmão e a irmã do meu vizinho seriam os assistentes.

Como tínhamos duas bolitas quase do mesmo tamanho, lançávamos ao ar e a “coisa” correu bem. Aumentámos a dificuldade, mas como não tínhamos mais bolas fui buscar o ovo de madeira com que a minha avó remendava as meias. Aqui já não correu tão bem. Deixávamos cair ora uma das bolas ora o ovo que não dava jeito nenhum. Experimentámos o contorcionismo, mas as pernas pequenas demais não chegavam à cabeça. Também não. Entretanto, lembrei-me que havia um baloiço preso a duas pernadas da laranjeira. Fomos para lá a fim de andar em cima dele, de pernas para o ar ou só com um pé. Demos um trambolhão. Também não deu.

Os palhaços. Sim, os palhaços não precisavam de muito. Fui ao estojo da minha tia e tirei de lá o batom vermelho. Pintámos a cara. Aí até deu para algumas brincadeiras. O meu irmão e a outra menina riam, riam com o que fazíamos.

Eram, por enquanto, os nossos espectadores. Depois seriam os nossos pais e até alguns vizinhos. Tudo viria a seu tempo.

A corda! Bem, não tínhamos corda para poder andar sobre ela como fazia aquela senhora de vestido cor-de-rosa e sapatilhas de bailarina. O meu vizinho lembrou-se. Havia a corda onde se estendia a roupa. Não tinha roupa estendida. Que sorte. E subir? Fui buscar um banco à cozinha. Subiu ele. Não se equilibrava. Eu experimentei. A corda partiu-se e com ela vim eu também. Experimentámos com a corda que sobrou. Estão a imaginar-me em cima da corda a fazer malabarismo? Pois, foi o que pensei também. O que valeu é que a minha avó achou-nos calados demais e veio ver o que se passava. Deu connosco a tentar subir à corda de novo.

Mas ainda havia mais! Ah! E os leões? Leões não tínhamos. Fomos buscar o cão. Não achou graça. Ficou deitado onde estava bem sossegadinho.

Havia o gato, como último recurso. Fomos buscar o gato que até era amarelo. Chamámos e saltou para a cadeira. Tínhamos ali artista. Pensámos nós. A cadeira era pouco para um artista daquele gabarito. Era um salto por dentro de um arco, feito da tampa de uma panela velha. Bem, o gato assanhou-se e saltando por cima de tudo arranhou-nos as pernas, os braços. Nem os pequenos espectadores escaparam, saindo dali a gritar bem alto. Até a minha avó que ficou para ver o que acontecia.

Recordámos esta aventura e outras do mesmo género. Já noite fechada fomos para casa com um sorriso nos lábios.


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