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“Prisioneiros inocentes”: a história dos que cumprem uma sentença ditada pela pandemia

12 de Abril 2021

A luta contra o inimigo invisível deixa marca em cada casa por onde passa. E mesmo naquelas onde o novo coronavírus ainda não entrou encontramos as marcas, muitas delas visíveis a olho nu e outras tantas que deixam a alma marcada.

No meio deste caos em que todos vivemos há um ano, são os residentes das estruturas residenciais para idosos, os conhecidos lares, dos que mais sofrem e os que mais privações vivem.

Como é que se explica a alguém que se tornou “prisioneiro” sem ter cometido crime algum? Foram privados da rua, do contacto com as famílias e de viverem o tempo que lhe resta com a paz de espírito que todos pedem. No fundo, viram-se privados de viver e passaram a sobreviver.

Quando o vírus surgiu em Portugal, a maioria destas instituições acreditou que seriam fechados por “apenas” 15 dias, mas com o passar do tempo todos se foram apercebendo que não havia data para um regresso à rotina das visitas, das saídas e da vida em geral.

“Com o passar do tempo e as saudades a aumentar, os nossos utentes começaram a ficar ansiosos pelo contacto com a família, queriam vê-los mas também os queriam poder abraçar”, conta Célia Oliveira, directora do Lar Rainha Santa Isabel da Santa Casa da Misericórdia de Pombal.

Já Catarina Gaspar, directora do Lar Nossa Senhora da Graça do Centro Social e Paroquial de Almagreira (Pombal), destaca a capacidade de adaptação dos utentes daquela estrutura residencial, frisando que “temos pessoas na instituição que estão conscientes e iam acompanhando a informação à medida que esta ia surgindo nos meios de comunicação e percebiam que as coisas estavam realmente diferentes, mas que tudo o que estava a ser feito era, essencialmente, pela segurança deles”.

Dias de incerteza

No entanto, nem todas as instituições puderam preparar os seus utentes para a pandemia que o mundo enfrentava.

“O lar foi atingido pelo coronavírus numa fase inicial, onde até medo havia de enviar doentes para o hospital. Ainda não existiam planos de contingência feitos. Digamos que nós fomos um bocadinho umas cobaias porque a realidade que se conhecia no início da pandemia difere muito da actual. Dos 30 utentes residentes na instituição 27 foram infectados, e na altura vieram a falecer sete, mas não sabemos ao certo se todos faleceram devido a complicações provocadas pelo vírus ou se apenas faleceram infectados e a causa de morte foi outra”, explica ao TERRAS DE SICÓ Sílvia Gonçalves, directora do Lar Conchego de Alvaiázere, na época conhecido como Solar Dona Maria.

A instituição acabaria por receber o apoio de equipas externas para conseguir dar resposta às necessidades existentes, todavia, as funcionárias da estrutura residencial acabaram por ser muito estigmatizadas socialmente, dado que “as pessoas não se queriam aproximar delas, tinham medo quando as viam entrar num supermercado e isso foi muito duro para elas, até porque Alvaiázere é um meio pequeno onde toda a gente se conhece”.

Porém, se um surto no início da pandemia instalou uma onda de medo entre os residentes, um surto quase um ano depois de o mundo ter sido obrigado a fechar portas não é diferente.

“Quando o surto iniciou, começámos a testar os nossos utentes e os casos positivos começaram a surgir. Chegámos a ter 55% dos nossos utentes infectados, foi dos períodos mais duros e sombrios da minha vida. Vivemos dias muito difíceis. Como é que se diz a um filho que o seu pai ou a sua mãe morreu? Sabendo que não houve a oportunidade de ser dado aquele último abraço, que não houve a oportunidade da despedida, que a última vez que estiveram fisicamente com eles foi antes de Março de há um ano. Tudo começou em Dezembro mas prolongou-se até Janeiro, ou seja, chegou nesta 3.ª vaga, numa fase em que já todos acreditávamos que estávamos a conseguir ‘dominar’ a pandemia, porque nos estávamos a portar tão bem e de repente os números disparam, tanto em mortes como em infectados”, relata Célia Oliveira, sublinhando que o que ali aconteceu foi em muito semelhante a um campo de batalha, onde “tínhamos soldados na linha da frente, mas os outros que estavam na retaguarda eram os repositores de balas para que eles pudessem avançar”.

Nesta instituição houve ainda 17 funcionários infectados que viveram com “um profundo sentimento de culpa por não puderem estar no terreno a ajudar os colegas a cuidar dos residentes do lar”, mas “como a necessidade aguça o engenho, foi montado um verdadeiro hospital de campanha onde até soro tínhamos para colocar nos nossos idosos, sendo que toda a equipa médica e restantes funcionários foram incansáveis e depositaram quanto amor tinham em cada coisa que faziam, tal como antes, mas agora em dobro porque há uma necessidade ainda maior de o fazer”.

Se em algumas das muitas estruturas residenciais para idosos que se encontram espalhadas pelas Terras de Sicó houve surtos que passaram a ser sinónimo de perdas, em muitas outras o vírus conseguiu ser “dominado”.

“Tivemos apenas um infectado até ao momento. Temos uma utente que está há um ano em isolamento porque tem de sair da instituição três vezes por semana para fazer hemodialise, e em Fevereiro acabou por ficar infectada, mas como tem estado sempre em isolamento conseguimos que isso não originasse um surto junto dos restantes utentes. Relativamente às colaboradoras que cuidavam desta utente, saíram da instituição e cumpriram isolamento profiláctico, chegando mesmo a fazer teste. Felizmente não houve nenhum caso de contágio. Apesar de não ter tido nenhum sintoma da doença, a utente ficou muito revoltada, mexeu muito com o psicológico dela porque está há mais de um ano em isolamento e acabou por ser a única a ficar infectada, e logo na altura em que lhe foi administrada a segunda dose da vacina”, conta Manuela Rodrigues, directora do Lar da Santa Casa da Misericórdia de Ansião.

Famílias e visitas 3G

Dentro das quatro paredes destas instituições têm-se vivido dias de tamanha incerteza, de profunda angústia e medo constante, mas fora delas batem os corações apertados das famílias.

“Na altura em que tivemos aqui um surto, mantive as famílias sempre informadas e a onda de amor que nos foi chegando foi incrível. Era o reforço que todos aqui dentro precisávamos para continuar a executar o nosso trabalho. Recebi verdadeiras mensagens de amor que me deixaram em lágrimas mais do que uma vez”, revela a responsável do Lar Rainha Santa Isabel.

Numa altura em que o contacto físico não lhes é permitido, as tecnologias que antes eram rejeitadas por muito deles passaram a ter o papel de “melhores amigos”.

“As novas tecnologias permitem que haja uma proximidade, é verdade que é uma proximidade diferente mas permite que os nossos idosos falem e vejam todos os filhos todas as semanas. Até mesmo as pessoas com problemas cognitivos têm aqui uma oportunidade. Uma senhora que aqui temos com demência nunca memorizou o meu nome, mas sabe que sou eu quem faz as chamadas e pede-me para lhe ligar para a família”, refere Catarina Gaspar.

A capacidade de adaptação e a necessidade de “matar” saudades dos seus levou a que os utentes do Lar Rainha Santa Isabel se tornassem peritos em aplicações como o whatsapp, dando-lhes a possibilidade de agora terem uma maior proximidade com os filhos.

Contudo, a retoma das visitas presenciais representou uma dificuldade em algumas das instituições, levando a que, em alguns dos casos, fosse dada prioridade às novas tecnologias.

“Quando as visitas retomaram, a ansiedade passou a ser uma constante. A forma como as visitas eram feitas, a distância que tem de haver e a necessidade de haver um dia definido para tal, tudo constituía um problema, mas quando começaram a ver que era igual para todos, acabaram por compreender e aceitar, embora ainda seja uma luta. Tenho casos de idosos em que a visita presencial funciona melhor e outros em que é precisamente o contrário, porque não deixa aquela ansiedade de não poder tocar, de não poder interagir fisicamente. Tem sido muito complicado porque tenho idosos que já não reconhecem os filhos passado um ano e isso é muito duro para os familiares. No espaço de um ano, para muitos deles, a recordação dos filhos é algo que lhes foi apagado da memória”, partilha a directora técnica do Lar Nossa Senhora da Graça.

Vacina: a (in)certeza de um futuro

A vacina foi-se tornando a luz ao fundo do túnel, especialmente, para os utentes e funcionários destas instituições. Porém, com o passar do tempo transformou-se numa sombra de dúvida e incerteza.

Apesar de todos eles já se encontrarem vacinados, e com ambas as doses, as medidas restritivas impostas pela DGS mantêm-se e os utentes continuam isolados das suas famílias.

Catarina Gaspar reitera que “apesar de não termos tido nenhum caso positivo na instituição e de já todos os utentes se encontrarem vacinados, as restrições continuam as mesmas, levando a que muitos já nos digam que esta foi a segunda Páscoa que passaram sem os filhos, mas que não sabem se para o ano ainda cá estão”. As mazelas da pandemia serão a longo prazo, no entanto, já se sente no imediato “as pessoas cada vez mais tristes e deprimidas”.

A ausência de certezas e as constantes previsões levam a que um ano depois desta pandemia ter começado ainda se pergunte: quando é que nos poderemos voltar a abraçar?! Ninguém sabe…

Compasso de espera/pausa

O facto de terem sofrido um surto logo na fase inicial da pandemia levou a que os utentes do agora Lar Conchego de Alvaiázere ficassem um maior período de tempo em isolamento por não se saber durante quanto tempo poderiam transmitir o vírus.

“Tivemos o caso de um utente que faleceu em Setembro, uma pessoa completamente autónoma, consciente e que via a família da varanda porque estava em isolamento no quarto. Acabou por vir a falecer devido a um AVC, mas esteve em isolamento no quarto de Março a Junho, porque de 15 em 15 dias o resultado era positivo”, revela a directora Sílvia Gonçalves.

Os falsos positivos, onde “ainda são detectados resquícios do vírus, deram a entender de que haveria utentes reincidentes, sendo que dois deles se mantiveram em isolamento até Junho por testarem positivo continuamente. Hoje sabemos que portam apenas vestígios do vírus, mas são incapazes de o transmitir. São coisas que nem a própria comunidade médica tem capacidade para explicar”, diz.

Vidas que se perdem

“O mais duro de tudo isto foram as perdas. Perdemos pessoas de que nunca nos esqueceremos. Um dos utentes que veio a falecer era um senhor totalmente autónomo e incrivelmente bem-disposto. Tomava o pequeno-almoço antes de todos os outros e depois ia para a porta do elevador ajudar os restantes a descer, era conhecido como o porteiro. Infelizmente foi infectado. O isolamento e o saber que estava infectado matou-o. Ele desistiu de viver. Quando a saturação atingiu valores muito baixos, tivemos que o levar para o hospital e ao ser levado na maca eu vim até à rua para lhe dizer que era apenas um ‘até já’. Como não houve reacção da parte dele ao que eu estava a dizer, voltei a repetir. Levantou a cabeça, olhou-me nos olhos e não me prometeu que voltaria. E a verdade é que não voltou. Nunca me esquecerei dele”, confidencia, emocionada, Célia Oliveira, directora do Lar Rainha Santa Isabel da Santa Casa da Misericórdia de Pombal.

RUTE AZEVEDO SANTOS

[REPORTAGEM DA EDIÇÃO IMPRESSA]


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