O tio Augusto era um homem com gostos muito peculiares.
Era irmão da minha avó Catarina embora muito mais novo. Era filho da bisavó Micaela, mas de um segundo casamento, uma vez que ela casou três vezes. Mulher valente. Das três vezes que casou, ainda sobreviveu a todos eles. E morreu muito velhinha. Tinha ódio de estimação às portas abertas. Para ela, ficar uma noite com a porta mal fechada, era morrer de novo. Uma noite, já com todos na cama lembrou-se que a porta da rua podia ter ficado aberta. Foi ver e… caiu pelas escadas. Mais uns dias e faleceu.
Mas o tio Augusto era juiz. Estudou na Universidade de Coimbra, ainda nas instalações antigas pequenas e acanhadas onde hoje é uma das faculdades, grande e arejada, com a estátua de D. Dinis a vigiar quem por ali anda. Junto às escadas monumentais que outrora os estudantes percorriam a correr, com as capas negras a esvoaçar.
Não fazia galardão disso e portava-se como toda a gente. Melhor dizendo: Não tinha “peneiras”. Não gostava de mim. Nunca cheguei a saber porquê.
Depois de viúvo e aposentado foi parar a casa do meu pai. Aí, gostava de se sentar numa cadeira feita de propósito para ele. A cadeira, estilo praia tinha de ter um reforço no fundo. É que o tio Augusto era muito grande e gordo. A barriga grande parecia uma enorme bola. Os meus primos quando o iam visitar não se chegavam muito. Diziam que ele a qualquer momento podia estoirar. Nunca estoirou.
Era um homem que, quando estudante de Coimbra, levou todas as praxes e tradições relativas à academia, a sério. Foi homem das serenatas por baixo das janelas das tricanas. Tinha uma viola de fado de Coimbra que é diferente das violas de fado de Lisboa. Parece que a diferença está nas cordas. O que me fazia confusão, na época, era uma unha grande e postiça que colocava quando lhe apetecia fazer uma serenata.
Como disse foi parar a casa do meu pai. Sentava-se à porta de entrada da cozinha e daí via toda a gente que passava. Até via a estrada. Metia- se com as pessoas só mesmo pelo prazer de falar.
Gozava com as mulheres que trabalhavam na quinta. Um dia mandou a Lurdes Dança (alcunha) apanhar um molho de gambuzinos. Ela na ignorância e para não desobedecer, foi. Já tinha bebido uns copitos a mais. E se ela gostava! Andou à procura na quinta toda. Encontrou o meu pai e disse-lhe que o Sr. Marques (como ele era conhecido) a mandou fazer. O meu pai riu-se e disse-lhe que por vezes não se lhe podia dar “trela”.
À tarde, chamava a empregada e pedia-lhe que acendesse o fogareiro de brasas e aí assava uma sardinha que comia em cima de uma fatia de broa. O azeite pingava por entre os buracos do pão e por entre os dedos, lambia-os com toda a satisfação. No fim, bebia um copinho de jeropiga.
Ali, quando o calor apertava fazia uma sesta. Ninguém o incomodava e era isso que gostava mesmo.
A quinta do meu pai era farta em árvores de fruto. Tinha laranjeiras, pessegueiros, macieiras e figueiras. Estas eram de várias qualidades. Não raras as vezes eu e o meu irmão íamos para cima das pernadas e deliciava-mo- nos com uns figos especiais de uma figueira pingo de mel. Também colhíamos para secar no “passeiro” em cima de palha de centeio. Eram passas de figo que nós comíamos à tarde. Ele também gostava.
Os restantes eram para comida dos animais. Era assim naqueles tempos já bem longínquos.
O meu tio sentado à porta viu o rapaz, empregado da casa, com uma cesta de figos na mão e chamou:
– Anda cá, Zé. Dá cá um figo.
O rapaz respondeu prontamente enquanto colocava a cesta dos figos ao alcance da mão de meu tio.
– Senhor Marques, pode comer à vontade. Eles são para os porcos.
O tio deu uma gargalhada e comeu quantos quis.
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