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NATÉRCIA MARTINS

Memórias

29 de Janeiro 2021

Hoje é o primeiro dia do ano. Fazendo uma retrospectiva do ano que passou não posso dizer que foi muito mau. A malvada pandemia “Covid” veio estragar todos os planos que fizemos. Furando pelos “pingos da chuva” nem foi mau de todo.

Muitos dias o pensamento vagueou sem muito mais para fazer.

Nasci num dia de Inverno rigoroso em casa da minha avó materna dona de uma taberna em Coimbra onde se vendia chanfana na caçoila de barro preto, moldada em Miranda do Corvo. Cada vela de uma barca serrana, no Mondego, era uma caçoila aquecida no fogão de lenha. Também era o mesmo sítio onde o galo de penas vermelhas se passeava por entre os fregueses, mas que à noite de cauda caída se torcia e trocava as pernas. É que o espertalhão aparava com o bico os pingos que caiam da pipa. Pronto, aí estava o resultado!

Mas aí era a casa da minha avó materna.

Na casa paterna tudo era diferente. Não tinha taberna nem um galo que se passeava por entre as mesas dos fregueses. Era uma casa de lavrador e proprietário. Mas a minha mãe não morava lá. Era professora e morava no cimo da aldeia numa casa velha e telha vã. Dava aulas ali ao lado na escola tão velha como a casa onde vivia.

Os professores foram sempre os parentes pobres do sistema. Salazar no governo. Estava no poder e ainda lá estaria por muitos mais anos. Quem não fosse de acordo com ele não tinha lugar assegurado. Assim foi com o meu pai. Era amigo de uma família que não comungava com as do sistema. Ficou sem emprego.

O frio entrava por todos os lados. No telhado e nas frinchas das portas.

Eu pequenita, tinha medo de lá estar e dormir. Uma noite das poucas que lá estive, os gatos lembraram-se de miar tresloucados. Toda a noite.

Rumei a casa da minha avó paterna na mesma aldeia. Essa já tinha uma casa considerada boa. O meu avô, pai do meu pai, tinha estado em África. Morreu com a pandemia da pneumónica.

Aí não se ouviam os gatos. O cão era da família. Estava sempre deitado aos nossos pés no estrado da braseira.

Entretanto, o meu pai foi trabalhar como feitor na casa maior da vila. Andava a cavalo. Um dia o cavalo espantou-se e uma queda valeu-lhe uma série de meses no hospital em Coimbra.

Tempos depois nasceu o meu irmão que, claro, também foi parar a casa da avó Amélia.

Era uma senhora sempre vestida de negro, como todas as viúvas daquele tempo.

Acompanhava-a uma filha solteira que ao serão nos contava histórias de lobisomens, maltrapilhos e bruxas.

No natal era o Menino Jesus que entrava pela chaminé. Trazia uma caneca ou umas meias. Uma noite deixei toda a gente deitar-se e fui espreitar. Que desilusão! As prendas já lá estavam. Chorei muito. O tempo foi passando. Também chorei muito no dia em que nasceu o meu irmão. Ingenuamente eu queria deitar milho à cegonha que o trouxe no bico.

Na sala grande onde se debulhava o milho, o feijão e os tremoços, jogávamos ao loto e dominó. Sempre a feijões iluminados com a luz trémula do candeeiro de petróleo. E o depósito a esvaziar.

Também se fazia serão a separar os feijões. Brancos, frades e vermelhos. Quando alguém deixava cair a cabeça cheia de sono misturava os feijões outra vez. Risota geral.

Ali, na sala grande, fazíamos bailaricos com um velho gira discos. Se calhar a sala era polivalente.

O meu pai, entretanto, professor num colégio da vila, levava, fazendo da casa internato, nas férias grandes, os rapazes que não iam às longínquas terras de África.

À noite, ao serão, cantavam e tocavam viola. Foi a primeira vez que ouvi uma Morna de Cabo Verde. Nunca mais me saiu dos ouvidos. Outros tempos.

A mesa de camilha, feita à enchó, pelo velho vizinho de alcunha Samouco, sempre me acompanhou e com ela tudo o que a rodeava. Hoje é minha. Muito velha. Cabem lá todos os que moram comigo, as visitas e todos os outros que lá se sentaram: Senhora Maria do Leitão, Senhora Guilhermina e a Senhora Matilde com a filha.

A minha avó Amélia morreu no dia em que fiz 14 anos. Tudo se modificou. Não havia histórias ao serão. Nem bruxas e lobisomens. Eu comecei a ler. Lia tudo o que tinha à mão.

Ainda leio. As histórias de bruxas e lobisomens são as que mais me encantam. Mas contadas pela velha tia tinham outro sabor.


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