Se calhar é uma mesa vulgar. Não é. Porquê?
É uma mesa redonda sem medida, feita por um carpinteiro vizinho da minha avó. Feita à enchó tem um curvo, no tampo meio manhoso. Não sabia ler nem o que é um compasso e muito menos um círculo perfeito. Mas à sua maneira fez a mesa e colocou o estrado onde cabe na perfeição a braseira. Ah, a braseira!
A braseira levou o meu pensamento há muitos anos atrás.
A mesa foi testemunha de momentos felizes e outros menos felizes. Foi testemunha de quando eu era pequena e me coloquei em bicos de pés e vi tudo o que tinha em cima. Como me senti grande. Quando nasci já a mesa era velha. Assistiu aos serões em casa da minha avó. A mesa era dela. Sim! A braseira vinha do lagar de azeite e aquele brasido aquecia as mãos e os pés ao mesmo tempo. Vinha a senhora Maria do Leitão, a senhora Guilhermina, a senhora Matilde com a filha. E cabíamos todas. A mesa parecia que esticava. Muitos serões ali se fizeram!
Há, ainda hoje, coisas que me fazem confusão. A senhora Maria do Leitão não tinha um dedo. Deixou uns ossos de porco a cozer para o seu Zé. Os ossos deviam estar cozidos há quanto tempo mas ela não arredava pé. Dizia-se que um leitão lhe decepou o dedo. Daí o nome: Maria do Leitão. Colocavam as mãos por baixo das “saias” da mesa e deliciavam-se.
A mesa acompanhou o tempo da minha avó que não gostava do presépio. Nunca deixou que o fizessem. A ceia de Natal não era com bacalhau. Não ia lá com couves cozidas e batatas. Isso comia ela durante a semana. De véspera matava um cabrito ou um leitão que ela mesmo estonava e temperava. Estonar é uma forma de tratar estes animais tenros. Ali no interior de Portugal ainda se faz. Consiste em mergulhar o cabrito ou o leitão em água a ferver e rapar com uma faca ou pedra rugosa de forma a tirar os pelos. Fica uma camadinha de gordura a envolver. Tão bom!
A azáfama das filhós na cozinha. E eram muitas as que se fritavam. Os belhós. Tudo em grandes alguidares de barro.
Depois demos conta de um lugar a menos na mesa. Era o lugar da minha avó.
Para o lugar dela foi o meu pai. Era um lugar de destaque.
Esse, sim, fazia um enorme presépio. Trazia um pinheiro e colocava por baixo as figurinhas com as mãos que mal lhe tocavam. Também durante uns anos fiz o presépio na igreja e punha-lhe o mesmo carinho que o meu pai em casa.
A minha mãe não se preocupava com estas coisas. A cozinha ocupava-lhe o tempo. Aí, sim, já se utilizava o bacalhau na ceia. Os belhós, as filhós e as broinhas. Tudo era supervisionado por ela. Um dia também o lugar dela ficou vazio. O meu pai ainda fez o presépio, mas não com o mesmo carinho. Uns anos depois foi o lugar dele que ficou vazio.
Hoje a mesa é minha, mas conserva a mesma magia. Todos lá cabem: eu, meu marido, filhos e netos. Não se perdeu a magia, mesmo sem a braseira de antigamente. Não há o lagar onde se iam buscar as brasas. As vizinhas também já não estão. Devem estar junto da minha avó, mãe e pai numa outra dimensão.
Mas a mesa feita à enchó, sem medidas e com “saias” feitas por mim ainda se conserva aqui em minha casa. Um dia o meu lugar e o do meu marido vão ficar também vazios. É a ordem natural da vida. Será um dos meus filhos a utilizá-la. Mas a magia que ela conserva, de caberem sempre todos, nunca se vai perder. Vamos lá estar todos na mesma. Mesmo que não nos vejam, como não vemos os que por lá passaram antes. Mas continuam lá.
Penso que a mesa é eterna e mágica. Tem a alma de quem lá esteve e já não é vivo. A minha, meu marido, filhos, netos e até das vizinhas. Por isso penso que é mágica.
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