O moinho era tão velho, mas tão velho que ninguém vivo sabia a data da sua construção. Também não era preciso. Quem vai dar-se ao trabalho de procurar a data da construção de um moinho, plantado junto ao ribeiro. Ninguém!
O moinho já não é nosso. Foi vendido há muitos anos, quando o único morador morreu.
Não tinha luz eléctrica. Também não precisava. Lembro me bem do moleiro. Figura esquisita e solitária dormia quando o sol se deitava e levantava-se quando a lua desaparecia no horizonte e o sol se espreguiçava por entre os carrascos e pinheiros. A água vinha do ribeiro mesmo aos seus pés. De resto não precisava de mais nada. As batatas, as couves e a farinha tinha-a ali mesmo à mão. De vez em quando ia à vila comprar qualquer coisa que faltava. Não tinha muitas exigências. Solteiro e moleiro. A mulher nunca lhe fez falta.
Cada pedra do moinho tinha uma história que nós apenas adivinhávamos. Pendurados na parede uns retratos tão velhos que nem o homem sabia os seus nomes. O espelho onde cortava a barba, de tamanho reduzido, era, para ele, um luxo.
Sentava-se num banquinho em frente à mó para ver o milho desfazer – se por entre aquelas duas pedras. O som era música para ele.
Coisa curiosa. As pessoas levavam os foles cheios de grão até ao cimo do monte, numa pequena ponte que ele próprio construíra.
Traziam o grão e levavam a farinha. As pessoas sabiam de quem eram.
A ponte não era mais que duas tábuas pousadas em cima de pedras a trancar.
Um dia fui lá. Afinal o moinho tinha sido nosso.
Tudo era igual. As mós agora paradas. As teias de aranha tomaram conta do “edifício”. O espelho e os retratos no mesmo sítio. Ainda uns sacos de grão pousados junto à parede. Agora os moradores eram as aranhas e os ratos. É que os restos do milho e da farinha serviam de alimento. Não precisavam de mais nada. Que grande restaurante!
Sentei-me no banquinho que o moleiro utilizava, a descansar as pernas. Não era muito fácil chegar lá. Não fiz barulho. Um ratito saiu do buraco e sentado nas pernas traseiras deu-me as boas vindas. Olhou-me espantado, mas não fugiu. Os olhos castanhos, muito abertos. Então com a boca escancarada mostrou-me dois dentinhos grandes, na frente como se desse uma gargalhada. Não pude deixar de me rir. Era simpático o bicho!
Nas paredes continuavam os retratos como se o moleiro anda lá estivesse. Retratos de pessoas, santos e de uma criança. Um dos retratos destacava-se dos outos todos. Um homem muito bem vestido. Casaco de bom corte. Camisa branca de colarinhos engomados. O alfinete que prendia os colarinhos era de ouro. O cabelo bem penteado com risco ao lado compunha o rosto onde a barba crescia afiada, mas cuidada. Meio corpo como se usava. Quem era o homem? Não sei. Apenas que se destacava dos outros.
Em vida, o moleiro, gostava de olhar aquela fotografia sem nunca divulgar quem era.
Tirei-a do lugar. Tinha dedicatória nas costas. “Para o meu grande amigo”. Mais nada!
Saí como se o moleiro ainda lá estivesse e com o barulho das mós a moer o grão. A música da água a correr no regato que o alimentava.
E o retrato! Quem seria o homem que deixou aquela dedicatória ao moleiro?
Ouvi dizer que os enigmas não têm explicação. São enigmas. Pronto!
Aquele retrato, para mim, foi um enigma. Penso nele muitas vezes.
E o moleiro? Quem seria o moleiro? Porque vivia ali isolado do resto do mundo?
Perguntas que nunca irão ter resposta.
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