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RUI MIRANDA

Carta ao Planeta

8 de Junho 2020

Sei que estás aborrecido connosco. Mas também já nos conheces há tempo suficiente para saberes o quão louco somos. Nestes milhares de anos de convívio temos-te tratado muito mal. Nem sequer me atrevo a enumerar, e muito menos a explicitar todos os males que te fizemos. Tu conhece-los muito bem, nós nem sempre estivemos cientes deles. Penso, também, que a maior parte foi provocada pela ganância. Esse mal, que para mal dos nossos pecados, é transversal a todos os seres humanos. A diferença é que alguns têm a oportunidade de a aproveitar de forma mais acintosa, melhor, poderosa, que outros. Todos nascemos iguais, mas transformam-nos – e colocam-nos em prateleiras verticalizadas –, sem nos perguntar a opinião, em seres compartimentados com uma comunicação enviesada, a fingir uma igualdade que na realidade não existe. Podemos dizer o que queremos sem ultrapassar os limites. E os limites são sobretudo os das pessoas que conseguem aproveitar melhor as oportunidades da vida, porque para isso mais facilidades têm para o conseguir. O momento certo no lugar certo, as pessoas certas no momento certo. Se os outros compartimentos não respondem a estas afrontas é porque se sentem impotentes e amorfos, adormecidos, com a esperança de que tudo melhorará. E este será o lado perverso; todos têm esperança de um dia subir ao patamar dos que se aproveitam da tal oportunidade e, assim, melhorar a sua vida. Na maior parte dos casos sem olhar a meios, como, aliás, já faziam/fazem os que a elas já tinham/têm acesso. É a natureza humana. Comandada, quiçá, pelo medo. O medo da fome, o medo do insucesso, o medo da morte – da morte prematura; creio.

Tudo isto para quê? A que nos conduziu esta natureza humana da posse a todo o custo? Vê o que te… não precisas de ver. Tu sente-lo! E creio que decidiste responder.

Ainda te lembras de quando nos iniciámos no equilíbrio em dois membros libertando os superiores para um número sem fim de tarefas? Ainda eram chamados hominídeos. Como deve ter sido emocionante. Há quanto tempo? Há cerca de 4.000.000 de anos. E parece que foi ontem. Mas a vida não parou e há cerca de 1.800.000 anos surgiu um ser que, no dizer de Richard Leakey, e passo a citar, “…já não se limitava a pensar em como arranjaria a próxima refeição”. Com garbosidade o denominamos Homo erectus. O que fazer, então, com os dois membros que ficaram disponíveis? Aperfeiçoar, o que conseguiram, talvez, porque tinham um cérebro maior, o que houvera feito o Homo habilis, (há 2.200.000 anos) que também já se tinha conseguido libertar do incómodo de colocar, os membros superiores no chão para se locomover. Nasceram, assim, instrumentos mais delicados mas também mais perfeitos. E, de não somenos importância, utiliza o fogo. (1)

O Homo erectus é considerado – não unanimemente – o primeiro antepassado directo do homem actual. Como e quando se operou a mudança, ainda é uma incógnita. O que podemos afirmar é que entre os 400 000 e os 200 000 anos atrás surgem crânios que apresentam uma mistura de caracteres de Homo erectus e Homo sapiens; assim como, os dados actuais não nos permitem descortinar se o primeiro evoluiu a partir do Homo habilis. Nesta História também se vai intrometer o homem de Neandertal. Contemporâneo do Homo sapiens, com este terá convivido até ao seu desaparecimento, ou – o que será uma probabilidade a não negligenciar – então, não se terá tratado de uma extinção, mas sim de miscigenação/evolução. A evolução física dos seres humanos em todo o mundo ter se há completado há cerca de 20.000 anos. Hoje a evolução é essencialmente ao nível das ideias e não dos corpos. Duma coisa, no entanto, temos a certeza: naquela época, ainda só te delapidávamos frugalmente. Só o que era necessário. E tu nem sentias. O pior ainda estava para vir. Daí até ao dealbar de 1800 foi um ápice. E das distâncias percorridas a pé, que logo de seguida tiveram a ajuda dos animais, passámos, quase sem dar por ela à The Rocket! E a velocidade passou de apreciação da paisagem a vertiginosa; ou quase. Depois, depois creio que não nos soubemos controlar. Daqui para a frente nada mais foi igual; e as transformações sociais, económicas e políticas rapidamente ultrapassaram a The Rocket que se tornou demasiado lenta. Passou-se, muitas vezes de forma dramática do mundo rural para o meio urbano, do trabalho manufacturado para a “máquina-ferramenta”, (Jean-Pierre Rioux), da oficina para a fábrica. Desaparece o artífice para dar lugar ao homem mecanizado, que Charles Chaplin tão bem compreendeu e genialmente representou. Nasce um novo empresário, uma nova mentalidade, em que o dinheiro/lucro passa a ser o seu leitmotiv. O tempo passa a ter outro significado: Time is Money. As primeiras vítimas foram aqueles seres humanos que nunca nada tendo tido ficaram à mercê destes novos empreendedores: um longo dia de trabalho e baixos salários foram a realidade da revolução industrial. Rapidamente se passou do homem para ti. Daí para a frente o crescimento torna-se o objectivo primordial. O lucro tem de ser mantido ou fazer crescer. Tudo isto foi feito à tua custa! Sem respeitarem as tuas necessidades! As matérias-primas que tão bem ias preservando – que só eram utilizadas na correcta medida – rapidamente começaram a ser-te esventradas de forma brutal. Lucro! Lucro! Parar seria morrer. E não reparámos que ao vilipendiar-te, sem respeito, utilizámos meios que, por si só, já eram de uma violência bárbara.

Tens toda a razão para estares zangado. Mas, encarecidamente te peço que não sejas muito severo. Pelo menos, não tanto como temos sido para ti. Saber perdoar, é um acto de sabedoria. Enviaste-nos um aviso em forma de desafio. Iremos responder adequadamente; esperando que desta vez te respeitem. Duradouramente!

Já vimos! Penso que todos reparámos. Necessitamos interiorizar! Admitir que é necessário! Que a riqueza material/ganância é o que menos tem importância. Ser feliz; ter prazer, passa por coisas que têm mais a ver com relacionamento, partilha, afectos. Tu, Planeta, tens tudo o que precisamos à mão de semear sem termos que te exaurir. Basta sermos sensatos! Sabiamente, obrigaste-nos a permanecer confinados às paredes das habitações, pelo menos aos que as tinham, porque os outros… para realizar, que o céu respira com outra luz. E como é bonito! Pena não poder desfrutá-lo com plenitude. Castigo! Sejamos ajuizados futuramente.

 

(1) É provável que os primeiros homens utilizassem o fogo mas talvez ainda não o dominassem. Provavelmente, de início terá usado e conservado o fogo natural e só mais tarde o tenham obtido ferindo duas lascas de sílex, ou friccionando com uma vara um pedaço de madeira. A serradura que daí derivava aquecia-se e fazia o lume. Aproximavam-se depois fibras vegetais que se incendiavam, após o que se atiçava a chama por baixo.

Nota: As teorias sobre a evolução humana não são as mesmas de há trinta anos atrás. Temos consciência disso. Mas as nossas palavras não pretenderam ser um texto científico. Gostariam, isso sim, que servissem para alertar sobre a exploração desmesurada do planeta. Às vezes gosto (ou não) de fazer o seguinte raciocínio: de que me vale reciclar, um pedaço de papel ou um plástico, quando um porta-aviões, ou um caça-bombardeiro, polui mais num minuto que eu em meses. No mínimo serve para desmoralizar. Já para não falar que todos estes equipamentos servem para matar seres humanos. É triste, não é? 


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