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Noemie Freire, a primeira “menina dos submarinos”

2 de Março 2019

Noemie chegou a Pombal tinha 10 anos. Hoje, mais de duas décadas depois faz história ao tornar-se na primeira mulher submarinista em mais de um século de existência destes navios na Marinha Portuguesa.

Nasceu em Thiais, nos arredores de Paris, em 1988, e veio com os pais corria 1997. Emigrantes em França desde muito novos, ele camionista, ela administrativa, decidiram regressar ao país de origem e à pequena aldeia de Touril, na freguesia de Vila Cã. Em Pombal, enveredaram pelo negócio da restauração, com uma pizaria que ainda hoje está de portas abertas.

É, portanto, nesta cidade que a pequena Noemie, já com nacionalidade portuguesa, prossegue a vida escolar, passando pelas escolas Conde de Castelo Melhor, Marquês de Pombal e Secundária local.

Concluído o 12.º ano, “não havia assim nenhum curso na Universidade que me despertasse o interesse”. Embora na família não houvesse ninguém na vida militar, “nem à tropa foram”, sempre sentiu curiosidade e viu aí uma oportunidade. Se bem o pensou melhor o fez. Informou-se dos requisitos necessários e decidiu concorreu à Marinha, pois “para a Força Aérea faltavam-me um ou dois centimetros”, conta.

Iniciou a ‘aventura’ com uma recruta de cinco semanas na Escola de Fuzileiros, em Vale de Zebro (Barreiro). Do pai, entretanto falecido, ainda recorda as palavras quando este a foi deixar ao comboio em Pombal naquele dia de Janeiro de 2007: “Tu não aguentas três semanas…”.

Puro engano. A ‘baixinha’ ruiva, de 1,58 metros, sentiu muitas dificuldades mas a tudo foi resistindo com a fibra com vencedores. “Na altura, vir sozinha, vir para o desconhecido, não foi fácil”. E a recruta em Janeiro também não. “Foi duro, mas o que mais me custava era o frio…” Arrependida? Nada, garante ao TERRAS DE SICÓ, na Base Naval do Alfeite, em Almada.

 

Submarinista

“Depois de nove meses no curso de formação de praças na especialidade de operações, estagiei dois meses no Centro de Instrução de Táctica Naval e embarquei na fragata NRP Corte Real, onde estive cinco anos”. Sempre à superfície, passa ainda por outra fragata – dois anos na NRP Bartolomeu Dias –, e pelo Centro de Coordenação de Busca e Salvamento Marítimo (MRCC), de Lisboa. Tudo isto até àquele Março de há dois anos. “No Dia da Mulher, convidaram-me para dar uma entrevista sobre o meu percurso e fui navegar no [submarino] NRP Arpão. Despertou o meu interesse e quando abriu o concurso decidi concorrer à especialização”.

Estava a caminho de fazer história, afinal, passava a ser a primeira mulher dentro de um submarino. O curso, que iniciou em Janeiro de 2018, durou um ano, foram quase mil horas a navegar na subsuperfície. Muito estudo sobre “sistemas de combate, sensores, sonares, válvulas, navegação; dormir pouco, faz parte da formação, foi complicado”, embora as rotinas já as conhecesse das fragatas. Funcionam por sistema de ‘bordadas’ (seis horas de descanso e seis horas de trabalho), em que as seis horas de descanso “é comer, fazer a higiene pessoal e dormir”.

Num ‘mundo’ até então só de homens, “ao início houve algum impacto, mas tudo se adapta, limando as arestas”, refere sobre a habituação à falta de privacidade dentro deste tipo de navio. “Está alguém despido?”, passou a ser pergunta frequente. “Foi tudo com naturalidade, com tranquilidade, muito respeito, nunca fui mal tratada, nunca me faltaram ao respeito, nunca ouvi piropos, nada disso”, assegura.

E a falta da luz do dia, o não saber se chove ou faz sol? “Quando andamos lá em baixo não pensamos nisso. Estamos tão focados no trabalho que não pensamos noutras coisas, todos temos a nossa função específica e tem de ser um por todos e todos por um, porque se uma função falha as outras também não funcionam”, explica.

 

Pegar na trouxa e ir

Há dias, à beira de completar 31 anos, a primeiro marinheiro Noemie Freire recebeu o diploma de conclusão do curso estando agora apta a integrar a guarnição dos submarinos portugueses. “Já faço parte da guarnição do NRP Tridente e posso embarcar a qualquer momento. E vamos para onde? Sabe Deus…”. Há sempre missões que não estão programadas e “podem ser de um dia ou dois, uma semana, um, dois ou três meses”. A mala está sempre pronta, “é só pegar na trouxa” e ir embora.

“Portugal é uma porta aberta para a Europa a nível marítimo” e, por isso, há sempre que investigar (narcotráfico, imigração ilegal…), apoiar, patrulhar a zona económica exclusiva, enfim, ver sem ser visto, “defender o país, em missões que, muitas delas, nunca passam cá para fora”.

O marido, pelo facto de também ser marinheiro – conheceram-se na base naval – “tem mais facilidade em compreender que eu não possa ligar para casa todos os dias, possa estar um ou duas semanas sem dar notícias”.

Noemie também é mãe. Diego completa este mês cinco anos. “Embarquei tinha ele 18 meses. Até aí fazia tudo o que uma mãe faz, e ele era tudo mãe, só queria a mãe. Bastou estar uma semana fora para que ele não quisesse mais nada comigo. Cheguei e o meu filho não queria vir aos meus braços, foi uma facada que recebi”, conta com a voz mais embargada.

O pior já passou, agora o filho sabe que a mãe está no submarino, “já conhece algumas coisas” do submersível e “a única preocupação é saber se consigo ver tubarões”. “Para mim é a parte mais complicada. Mãe é mãe, coração de mãe fala sempre mais alto, mas quando estou embarcada tento não pensar nele, porque se o fizer acho que vou estar ainda mais preocupada”.

 

Saudades de Pombal

Vive na Moita, a meia hora da base naval onde o NRP Tridente, a sua nova ‘casa’ durante os próximos três ou quatro anos, está atracado. Aproveita o tempo em que não está a navegar para estar com a família, com os amigos, dormir “bastante”, e “desfrutar da vida, porque ela são dois dias e deve-se aproveitar cada momento”.

Tenta vir a Pombal, pelo menos, uma vez por mês. Da cidade, recorda os tempos da escola, “era uma aluna razoável”, os amigos, com quem ainda mantém contactos. “Tenho saudades daquele tempo, afinal, é a minha terra, quando chego sinto uma satisfação enorme. Espero um dia voltar para lá”.

 

“Abri uma porta”

“Na história já fico, mas nunca pensei que fosse um assunto tão mediático e não mudei nada com esse mediatismo”, assegura Noemie, sobre as inúmeras notícias a propósito da primeira submarinista portuguesa. Mesmo com as abordagens de rua, onde reconhecem a “menina dos submarinos”, afiança ser “igual ao que era antes”. “Claro que estou orgulhosa, é uma imensa satisfação pessoal e profissional. Sei que abri uma porta e espero que venham mais [mulheres] atrás”, assinala.

A primeiro marinheiro Freire quer agora chegar a cabo e tem o futuro ‘desenhado’ na sua mente: “Fico por aqui [base naval] até à reforma, se Deus quiser, e depois vou para Pombal”. Assim seja.

LUÍS CARLOS MELO


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