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Natércia Martins

A “Venda” do Migalhas

15 de Fevereiro 2019

Conheci o Migalhas já ele era velho, aí dos seus sessenta anos. Cara redonda, corado e com um bigode farfalhudo a enfeitar o nariz afiado e as bochechas gordinhas.

Conhecido por toda a gente pois era um verdadeiro migalhas. Aproveitava tudo ao tostão. Ninguém lhe ficava a dever qualquer coisa pois quando ia pagar, ele cobrava com juros. Sempre os juros. Não perdoava.

A “Venda” era uma pequena loja que em tempos fora uma dependência da casa de habitação que o pai adaptou na época para que o filho usufruísse de um negócio. Seria o seu futuro ali mesmo, em casa.

Tinha tudo o que se possa imaginar: sabão, farinha, feijão, grão-de-bico, cadernos, lousas, giz, tecidos brancos e de cor, torcidas para os candeeiros, bacalhau que cortava com a faca própria pregada ao balcão. Também vendia elásticos e lápis.

Quando contei aos meus filhos como era o Migalhas, riram com loucos. Seria possível vender assim, numa amálgama impensável nos tempos de hoje?

Ah! Também vendia açúcar, massa e arroz. Nada disto era embalado e acredito que um ratinho mais esperto passasse por cima dos produtos com a maior das displicências e sem pedir licença.

O petróleo era vendido numa vasilha de lata que levávamos e quase sempre com uns centilitros a menos.

O café vendia-o num cartucho de papel pardo em forma de cone que ele próprio fazia no momento, pesado já com o cartucho. Pesava café e cartucho, assim como pesava o que era de pesar.

O Migalhas passava os dias, quando não tinha freguesia, que, diga-se em boa verdade, não era muita, a fazer festas ao gato. Um gatarrão enorme que dormia onde encontrava lugar confortável. Tanto fazia: em cima dos panos na prateleira eu em cima do saco aberto do feijão.

A casa não era um modelo de limpeza. O chão encardido dos pés descalços ou dos tamancos das mulheres que iam lá comprar café ou outro produto que faltava. Os cachopos iam pedinchar rebuçados, coisa que o Migalhas não atendia.

Ou pagavam os rebuçados ou não levavam nada.

O chão de tábuas com um ou outro prego a espreitar por entre as frinchas e a causar tropeções a gente descalça.

De vez em quando varria as tábuas, sem grande resultado pois o lixo estava entranhado. Já não havia vassoura que valesse.

O gato de vez em quando abria os olhos num langor de quem espera que o ratito, que ele já tinha vislumbrado, lhe passasse por perto. Não lhe apetecia sair dali, confortável De pêlo amarelo, listado.

Por sua vez o ratito não aparecia, mas espreitava no buraquinho no sobrado. De noite, isso, sim. De noite sem ninguém a ver o ratito enchia a barriga passando com o à-vontade de quem tem tudo ao seu dispor. E tinha.

Chegado à noite o Migalhas, parco em comida subia e comia a sua sopa. Como não havia luz eléctrica e para não gastar petróleo ia para a cama.

Morava com a mulher e uma filha solteira.

A mulher também era como o Migalhas. Sovina, gorda, com um bigode quase tão grande como o do marido.

Da convivência de tantos anos também não gastava nada sem ser preciso.

As couves do quintal, as cenouras na época própria e uma galinha que se matava ao domingo e bem aproveitada dava para a semana quase toda.

A feira num dia certa da semana, na vila, não era muito frequentada por este casal. Gastava-se dinheiro e este não caía do céu como costumava dizer quando a filha ou a mulher pedia para comprar um artigo que não houvesse na venda.

Não “fiava” nada. Comprava, pagava. Sem dinheiro não saía nada dali. Daí a alcunha de Migalhas.


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