Podia estar na barra dos tribunais na defesa da justiça; podia até, como às vezes deseja, ter um emprego “das 9 às 5”, mas não. Deixou o curso de Direito já em fase adiantada, quando a música, essa paixão que lhe vem desde miúda, se atravessou de forma avassaladora, irresistível, no seu caminho. E fez dela uma das mais conceituadas cantoras do panorama internacional, seja na área do canto lírico, da ópera ou do teatro musical.
É de Lara Martins que falamos. Nasceu em Coimbra, cresceu em Condeixa e fez-se à vida em Londres (Inglaterra), já lá vão duas décadas.
“Sempre gostei muito de cantar, desde criança que sempre cantarolei, passava horas em frente ao espelho a cantar, a imaginar-me num palco, mas foi no CAIC (Colégio Apostólico da Imaculada Conceição) que esse interesse e esse talento foram desenvolvidos”, revela a cantora.
Foi naquele colégio de Cernache, entre Condeixa e Coimbra, no último ano do Secundário, que o professor de música, “o professor Avelino”, a desafiou a concorrer ao Conservatório. Desafio aceite, entrada assegurada e início dos estudos musicais na classe de canto.
“Quando acabei o liceu (12.º ano) sempre quis seguir Direito e entrei na Universidade de Coimbra. Durante alguns anos fiz os dois cursos em paralelo, mas chegou a um certo ponto, quando ia passar para o 4.º ano da faculdade, em que tive a hipótese de ir estudar música para Londres, o que é daquelas oportunidades que aparecem uma vez na vida”, conta.
Sem hesitar, aproveitou-a . Suportada por uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkien, desenvolveu a sua formação na prestigiada Guildhall School of Music and Drama, onde os seus dotes se fazem notados.
Para trás ficou o curso de Direito e a dificuldade em informar os pais, que “sempre me apoiaram”, da decisão tomada.
“Nunca pensei fazer da música carreira, ser a minha profissão. Nunca tive aquele sonho de querer ser cantora, via isso como um hobby”, garante.
Mas o talento e o trabalho ´trocaram-lhe´ as voltas. Termina com distinção o curso em Londres e segue para Marselha (França), “para uma espécie de estágio profissional”. É convidada para integrar o grupo de solistas do Centro Nacional de Artistas Líricos (CNIPAL), onde foi solista na temporada 2002/2003.
Concluído este período, regressa a solo britânico para iniciar profissionalmente a carreira musical. “O início é sempre difícil. Londres é um centro de excelência a todos os níveis, tem escolas muito boas, há muitas oportunidades mas também há muito mais competição”, considera.
Começou sem estar vinculada a qualquer estrutura, fazia produções em várias cidades europeias, contracenando com grandes artistas e acompanhada das melhores orquestras.
Numa autêntica “vida de saltimbanco”, a sua versatilidade vocal era posta à prova e confirmada com êxito a cada passo. Uma artista completa, como já a chegaram a definir.
“Sou uma cantora que não gosta de ser posta em caixinhas, no sentido de se dizer que sou uma cantora lírica ou do teatro musical. Eu sou uma cantora, que gosta de cantar vários estilos musicais, e tenho a sorte de conseguir adaptar a minha voz a esses diferentes estilos. Gosto de cantar ópera, teatro musical, jazz, gosto de arriscar e fazer coisas diferentes. E hoje em dia é assim que gosto de ser conhecida, como uma cantora, uma performer”, afirma Lara Martins.
Convite irrecusável
Andava Lara de viagem em viagem, de palco em palco, em variadas produções, quando em 2012 surge uma oportunidade para se fixar profissionalmente em Londres, desempenhando um importante papel no famoso musical O Fantasma da Ópera.
Irrecusável. Mais uma vez. “Aceitei o convite também porque me permitia estar mais em casa depois de ter tido a minha primeira filha. Evitava assim deslocações constantes, muitas ausências que não iam ser fáceis de conciliar”.
O papel de Carlotta Giudicelli mediatiza Lara Martins. “O espectáculo é um dos mais conhecidos no mundo inteiro”. Semanalmente milhares de pessoas enchem o venerado Teatro Her Majesty’s para assistirem a uma das oito sessões daquele que é considerado um dos mais bem conseguidos musicais de todos os tempos. Os elogios ao desempenho sobem de tom.
“Foi um período de muita actividade, muito exigente, muito cansativo, só com uma folga por semana, mas muito recompensador”, refere sobre seis anos com poucas viagens e com as filhas – entretanto nasceu a segunda – por perto.
Para Lara, ser cantora é “uma profissão de alto risco, mas também com uma recompensa fantástica quando as coisas correm bem e que não se tem em muitas outras profissões”.
Além de ser financeiramente “compensador”, a cantora condeixense tem somado vários prémios, que “são motivadores e me deixam muito feliz”, porém, “a minha maior recompensa é sentir o carinho do público, sentir que de facto as pessoas apreciam o meu trabalho”.
Cansaço e rotina
Após seis anos a fazer o mesmo espectáculo, “chega-se a um ponto em que já não conseguimos desenvolver mais, já há cansaço e rotina”, e Lara Martins deixou há alguns meses aquele musical. “Já estava um bocadinho cansada de fazer sempre a mesma coisa, e estava cansada não só do ponto de vista artístico como também físico, porque eram muitos espectáculos por semana”, justifica.
Agora voltou à “vida de saltimbanco”, com produções e concertos em vários palcos, mundo fora. Até chegar o dia de um novo musical, quem sabe…
“Sinto-me realizada, mas como qualquer outro artista estou sempre a tentar alcançar novos desafios. Nesta fase da minha carreira sinto que estou mais à-vontade, mais confiante, já atingi alguns patamares interessantes, o que não quer dizer que esteja relaxada, porque não estou. Ando sempre à procura de novos objectivos, coisas interessantes para fazer, desafios criativos, venham eles de que ponto do mundo vierem”.
Lara Martins diz-se “uma felizarda” por tudo o que já conseguiu, “resultado de muito mérito, muita perseverança, energia, dedicação e teimosia, mas também tem de haver aquele pozinho de sorte para ajudar, e isso também se atravessou no meu caminho”.
É em Londres que vive há duas décadas, é lá que tem a “vida feita” e não se vê num futuro próximo a sair. A não ser que o Brexit a tire. “Há, claro, algum receio, porque ninguém sabe o que vai acontecer, estamos todos um bocado na expectativa de como o país vai ficar e o que vai acontecer. Se as coisas ficarem insustentáveis terei de repensar o que será melhor para mim e para a minha família”, sublinha, na esperança de que esse dia não chegue.
Condeixa
E Condeixa, onde fica no meio desta vida agitada e mediática? “É a minha casa, é a minha terra, foi onde cresci e me sinto feliz, onde tento vir o mais que posso, embora não tantas vezes quanto gostaria”, lamenta a soprano, que há algumas semanas subiu ao palco do cine-teatro condeixense para um concerto com a Orquestra Clássica do Centro.
Lara Martins. A música entrou-lhe na vida e o Direito ficou para trás. O tempo, esse justiceiro-mor, deu-lhe razão. Ainda bem.
LUÍS CARLOS MELO
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