Nasceu com o gosto pelos jornais, foi “obrigado” a trabalhar nos tribunais, mas o jornalismo preencheu-lhe (e bem…) uma longa vida activa, que culminou há apenas meia dúzia de anos. Chegou a ser um dos mais antigos jornalistas portugueses a exercer a profissão e um dos melhores a escrever sobre vinhos…
António dos Santos Mota, nascido em Soure nos idos de 1925, hoje com 93 anos, cedo despertou para a leitura, com as páginas do Correio de Soure, um semanário “bem feito, no tempo da situação” (leia-se, ditadura), a serem devoradas uma a uma.
A empatia que tinha pelos jornais leva-o, aos 15 anos, a fazer, em conjunto com dois companheiros, um jornal dactilografado. “Era o Saurium. Aquilo dava um trabalhão. Escrevíamos e depois tirávamos cópias, mas fomos alertados para os sarilhos que podíamos vir a ter por causa da Censura e acabaram por sair apenas quatro números”, recorda.
Anos mais tarde, porém, a vida profissional destina-lhe um início diferente daquele que porventura aspirava. Estagia na conservatória do registo predial da terra e foi no tribunal local, como copista, que amealha os primeiros trocos. “O meu trabalho árduo foi nos tribunais. No final da II Grande Guerra era dia e noite”, revive.
Por essa altura, já chamavam à atenção os seus dotes futebolísticos. “Diziam que tinha jeito”, atira. Ajuda a fundar o Grupo Desportivo Soure, em 1947, aos 22 anos, para poder competir, tal como outros colegas, a nível oficial. É o sócio número 1.
A bola, todavia, não era o seu foco. António dos Santos Mota vai subindo nas diferentes categorias da hierarquia funcional dos tribunais, mas o “bichinho” pelo jornalismo não desaparece. Antes pelo contrário. É assim que inicia uma colaboração com a Gazeta do Sul, do Montijo (!), jornal do qual era assinante.
Pula de tribunal em tribunal. Soure, Santarém, Alcobaça, Anadia, Arouca (“onde nasceu o meu filho António José”, hoje presidente da Junta de Freguesia de Soure e líder da APPACDM local). Por onde passa, sempre que possível enceta colaborações com os jornais da terra, de que é exemplo o Defesa de Arouca.
Mais jornais
Regressa ao tribunal de Soure e… mais jornais. No início da década de 1960, torna-se correspondente de O Primeiro de Janeiro, “no seu período áureo”, e pouco depois apoia o surgimento na terra da Gazeta do Centro, semanário que “cheguei a fazer praticamente sozinho” e do qual foi director durante vários anos. Mesmo depois de se transferir para a capital.
“Em 1964, entendemos que para dar continuidade ao estudo dos três filhos devíamos ir para Lisboa. Aproveitei uma vaga no tribunal da Boa Hora e fui, já com a fisga de também ir trabalhar para a delegação de O Primeiro de Janeiro, ali próxima”, revela.
Se bem o pensou, melhor o fez. Conseguiu o pretendido e “depois do tribunal, trabalhava no jornal ao fim da tarde e à noite”. Conciliar outra profissão com o jornalismo era frequente naqueles tempos.
“O meu objectivo era ser jornalista de corpo inteiro. Sindicalizei-me e tudo mais”, refere. Santos Mota exerceu as funções de presidente do Conselho Fiscal da Casa da Imprensa e de vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas.
No final da década de 1980, “no início da decadência do jornal”, deixa O Primeiro de Janeiro, onde fizera vários trabalhos relacionados com vinhos, néctar por si há muito apreciado e que cujas garrafas coleccionava.
“O vinho é um elemento preponderante da Humanidade e hoje é uma mais-valia espantosa. Corri Seca e Meca em reportagens, o Chile foi o local mais longe onde estive, mas também nas grandes regiões vitivinícolas francesas da Alsácia, Cognac, Epernay e Reims; em Itália, Espanha e Grécia”, regista. Com toda esta vivência enófila, não admira que se torne sócio da Associação Portuguesa de Escanções, ajude a fundar a Confraria dos Jornalistas Enófilos e venha a tornar-se um dos melhores conhecedores da história do vinho em Portugal.
Lembra-se de vir da capital a Penela provar “vinhos muito bons”. “Aqui nas Terras de Sicó, que é a única zona onde podíamos ter vinho a nível nacional, pouco se faz por isso. Era preciso batalhar melhor alguns aspectos”, recomenda.
Tempo de descansar
Reforma-se dos tribunais, continua por Lisboa, e aceita o desafio de abraçar um novo projecto: a Revista de Vinhos, onde entra como redactor em 1991. Jornalismo e vinhos, duas paixões, finalmente, juntas.
Durante meia-dúzia de anos coloca na publicação todo o seu esforço e empenho. Vai, entretanto, colaborando também na revista O Escanção, uma colaboração iniciada em 1994 e que se prolonga por 18 anos (!), tendo chegado à sua direcção. Dois fascínios a “falarem mais alto” até decidir descansar.
Ainda neste último percurso aceita um novo repto. Já o século XX caminhava para o fim, é convidado a colaborar no arranque de O Popular de Soure. “Vinha a Soure, de 15 em 15 dias, fazer o jornal praticamente todo e ia-me embora para Lisboa. Andei um ano nisto, até que disse ao Fernando Centeio, que me tinha desafiado, que não dava para continuar assim”.
Corre 2012 quando determina: “Agora vou é descansar”. Deixa a O Escanção, deixa a capital meio século depois, e regressa à terra natal, onde sempre manteve casa.
E ficou para trás também o jornalismo, essa “profissão nobre, às vezes com exageros que se praticam”, mas que “as pessoas que têm um sentido cultural da vida” gostam.
António dos Santos Mota reconhece que o sector “vive numa crise económica grande, a leitura dos jornais diminuiu muito, embora eu continue a ser um grande adepto dos jornais impressos, gosto de sentir o papel”.
O que não deixou foi de ser foi um (bom) apreciador de vinhos. Quando com ele conversámos, projectava uma deslocação a Viseu no fim-de-semana seguinte, a um evento sobre os vinhos do Dão. A fantástica vivência enófila sempre presente.
Vinhos e Soure
Na transição para as revistas, a labuta diária abrandou e com mais tempo disponível virou-se para a escrita de livros. Já vai em três e um quarto está à espera de edição. Começou pelos vinhos, claro. “Confrarias Báquicas Portuguesas – Breve história do seu movimento associativo” e “O admirável mundo do vinho – Testemunhos de um jornalista enófilo” foram os dois primeiros. Há dois anos lançou “Gente de Soure : memórias evocativas de cidadãos falecidos” e tem pronto um outro sobre factos relevantes da sua vila natal, onde, registe-se, a partir de Lisboa, em 1987, fundou e presidiu à Associação de Defesa do Património Cultural e Natural de Soure, “hoje transformada e que não tem nada a ver com a ideia inicial”.
O homem que vê Soure a “procurar modernizar-se”, mas “sem unhas para o conseguir”, aí está, aos 93 anos, ainda com apurados sentidos… crítico e de paladar.
LUIS CARLOS MELO
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