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Natércia Martins

Ti Zé da Rita

2 de Novembro 2018

Ti Zé da Rita, como era conhecido, morava numa casita quase isolada das outras casas, mesmo ao fundo do lugar.

Dizia-se que tinha tido mulher e uma filha, mas estas não gostavam de tanto isolamento e foram embora. Nunca se chegou a saber se foi assim. O certo é que morava sozinho com um cão por companhia. Cão rafeiro, preto e pequeno. Chamava-se Boneca, independentemente do sexo do animal. Não importava muito. Ao chamamento do Ti Zé, dava uma corrida, enquanto a mão calejada e negra lhe afagava a cabeça.

À frente da casa havia uma latada com um pé grosso, de tão velho. As uvas em cachos grandes e apetitosos, de cor rosada, ninguém sabia dizer se eram doces, ou não. Comia-os com sofreguidão, sentado num banco feito, em tempos, de um cepo de pinheiro. Logo que os bagos começavam a “pintar” já não saía da porta com medo que lhos roubassem. Era ele e o cão. Algum bago que caia, logo o cão se apressava a apanhar, se o dono não o apanhasse primeiro.

No inverno enquanto o frio e a chuva fustigava a porta, a lareira acesa aquecia e iluminava os dois: o dono e o cão.

O dono sentava-se no banquinho de pernas curtas para que o calor lhe chegasse melhor. O cão deitado em cima da saca de linhagem, dormia perto da fogueira.

Passavam ali os dias até o sono os levar para a cama. O dono comia as refeições cozinhadas ali mesmo, na trempe e na fogueira. Coisas simples de pessoa só. O cão lá fora no telheiro também comia o mesmo do dono. Chegava sempre para os dois.

Se precisava de ir à vila o cão acompanhava. A estrada serpenteava à frente deles. Calcorreavam a pé, a distância, que consideravam não ser muito longa.

Se quisesse entrar na “venda” o cão educadamente sentava-se à porta esperando o dono, enquanto este, se deliciava com um marquês de tinto.

No verão os dois faziam sestas no telheiro, fresco, de telha vã. Sempre o dono e o cão.

O Ti Zé falava com o cão. Contava-lhe que ali perto passava um rio, onde em novo e com o pai iam pescar barbos e trutas. Levavam um barco que ambos fizeram com madeira que crescera de umas obras ali perto. Um dia o barquinho virou. Foi uma aflição.

O cão levantou o focinho como a compreender o que o dono contou.

– Sabes, boneca, não sei como não morremos os dois. O rio é fundo. Como pudemos agarrámo-nos aos salgueiros da margem. Nunca mais fui pescar.

Uma tarde fresca de outono, o Ti Zé não abriu a porta de casa. O cão deitou-se à porta à espera da côdea de pão que todos os dias lhe servia de pequeno-almoço.

Passaram uns dias. O homem não ficava sentado na porta e o cão não saía de lá.

Os vizinhos, mesmo não sendo homem de muitas palavras ou grandes conversas, estranharam a sua ausência e a permanência do cão, dia e noite.

Foram ver.

O homem deitado na cama tinha morrido.

Depois das formalidades habituais, levaram-no para a igreja. O cão foi atras. Espantaram-no. Ficou à porta. Nunca arredou pé. Deitou-se e esperou pela cerimónia.

À saída quis acompanhar o dono perto da urna. Mais uma vez o espantaram.

Como se tivesse percebido que não o queriam ali, esperou que toda a gente passasse e foi no fim de todos. No fundo do cortejo fúnebre.

Nos dias seguintes os vizinhos chamavam a boneca para darem de comer. Nunca foi. Não lhe cheirava às sopas do dono.

Um dia desapareceu. Os vizinhos pensaram que teria ido em busca de outra casa.

Não foi. Também ele foi encontrado morto junto da sepultura do dono. Também ele morreu ali perto de quem o acarinhou durante tanto tempo.

Dizem que morreu de saudade.

Quem sabe?


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