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Natércia Martins

A minha aldeia

3 de Agosto 2018

Nasci na cidade de Coimbra meio por acidente. Digo meio por acidente porque a minha avó materna morava nesta cidade onde tinha uma taberna. Ali se vendia chanfana e vinho a copo.

Com vista para o rio Mondego, a criada contava as velas das barcas serranas, vindas dos lados de Penacova e ainda com o rio navegável que trazendo carqueja e carvão, iam a casa da Srª Catrina comer um prato de chanfana e beber um trauliteiro de tinto. Dizia-se que era das melhores. Contando as velas enfunadas pelo vento, rio abaixo. Sabiam quantas caçoilas precisavam aquecer.

As lavadeiras também vinham nas barcas, aproveitando o transporte, recolhiam a roupa nas casas das senhoras que prestando atenção ao rol da roupa suja a entregavam para no fim do dia ser devolvida às patroas.

A roupa era lavada no rio, nas pedras trazidas da serra, não se sabe por quem e quando, corada no areal que se estendia na margem. O estendal fazia-se nas grades que guardavam a rua da água do rio. Descia-se por umas escadas de pedra que ainda lá estão, hoje sem a utilidade de antigamente.

Mas dizia eu que nasci em Coimbra por acidente. Era Dezembro, a noite chuvosa e trovoada a mais não ser, com a chaminé a cair, empurrada pelo vento, em cima de um tacho de arroz de chouriço, cozinhado no fogão de lenha.

Eu, dentro da barriga da minha mãe devo ter resolvido ver o que se passava, e … nasci.

É por isso que, brincando, digo que nasci por acidente. Não estaria previsto para aquela noite nem para Coimbra, uma vez que a minha mãe, professora, morava longe, na serra, no Portugal bem profundo. A curiosidade é mãe de muitos vícios e eu já era curiosa. Queria ver o que se passava à minha volta.

O tempo era outro e os transportes também. Nesse tempo o meu pai de serviço no quartel na Covilhã só soube da novidade uns dias depois. No dia seguinte a eu nascer, a minha mãe pegou em mim, na “tralha” necessária a um recém-nascido e foi na camioneta da carreira para casa.

A camioneta passou por aldeias, curvas e contra curvas, mas chegou ao destino, já ao cair da noite. Em Dezembro os dias são pequenos. Nem pensar em telefones. A minha avó não tinha e na cidade contavam-se pelos dedos de uma só mão.

Aí fui feliz. Também aos cuidados de outra avó, viúva, sempre vestida de preto. Na quinta grande. Não havia rio nem chanfana. Mas havia árvores para subir, galinhas e coelhos. A companhia de brincadeiras com o meu irmão que entretanto nascera.

Tantas saudades desse tempo! Íamos às laranjas, aos figos e às cerejas com a cerejeira carregada de pequenas pérolas vermelhas.

Já noite fechada, sem luz eléctrica, as descamisadas onde os vizinhos vinham ajudar. As histórias contadas ali no verão sentados no cimo do monte das espigas. Na mesa com a braseira, no inverno ou no lagar de azeite com a fornalha sempre acesa. Parecia-nos o inferno. Mas não deixávamos de brincar ali mesmo em frente.

O velho Abílio aparecia no primeiro dia de lagaragem e só desaparecia, como tinha chegado, no último dia. Em silêncio. Sentava-se frente da fornalha, no banco feito com uma trave colocada em cima de dois cepos e comia com os lagareiros. Também chegava para ele. Contava “estórias” fantásticas de lobisomens e bruxas. E nós acreditávamos.

O lagar trabalhava na mesma cadência de sempre, sem se preocupar com tudo o que girava à sua volta.

Esmagar a azeitona na vaza, caldar, prensar e no fim o fio de azeite a cair na fonte.

Tantos anos se passaram…

A memória será sempre a última a desaparecer.


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