Faço arrumações de vez em quando e ao mexer na tralha velha que herdei de casa dos meus pais encontrei uma panela de ferro. Daquelas de três pés. Olhei lá para dentro na esperança que saísse, coberto de fumo azul, um génio encantado. Daqueles das histórias. Mas não! Era só uma panela de ferro grande, preta por dentro e por fora mas veio-me à memória as matanças do porco na quinta.
O porco era criado lá, com couves e farelos, tirados da cozedura da broa.
Naquele tempo, pelos anos quarenta e cinquenta não se compravam rações. Primeiro porque não havia à venda. Segundo também não havia dinheiro para as comprar.
O meu pai matava os porcos grandes e gordos. Era uma festa desde o chamuscar, limpar e abrir. Os cachopos como eu e o meu irmão assistíamos a toda aquela azáfama, correndo por onde podíamos e não ralhassem connosco.
Recordei que o porco depois de morto e aproveitado o sangue para as morcelas e chouriços mouros, era colocado em cima de tojos a fim de chamuscar. Aí havia a tradição de, quando se virava o porco para limpar do lado oposto se dizia: — vira-se o porco, bebe-se um copo. O garrafão era a companhia fiel daquelas lides.
No ribeiro lavavam-se as tripas para se fazerem os chouriços.
Naquele Portugal, interior e profundo aproveitava-se tudo.
Começava-se pelas morcelas que eram deliciosas com canela e erva-doce. Esquisito?
Talvez não. Portugal é um retângulo pequeno mas com regiões tão diferentes entre si.
E era aí que a velha panela de ferro entrava. As morcelas têm que ser “ encaladas”. Mergulhadas em água a ferver para que o sangue com que são feitas, coza. Depois vão para o fumeiro.
A panela de ferro com água a ferver e o lume da fogueira por baixo, davam calor e o cheiro característico da matança do porco.
Mas a panela de ferro com três pés também servia para fazer cozido ou sopa. O cozido da matança com tudo o que se aproveitava e que não se podia guardar dentro da salgadeira, cobertas de sal. Guardava-se o toucinho, os presuntos, as orelhas e o rabo.
Também por aqueles sítios, a esse cozido se chamava cacholeira. Aproveitavam-se os ossos da cabeça que com couves da horta, nabos e batatas era um petisco. Só mesmo daquela época, tudo cozinhado na panela de ferro.
Porque será que tinha todo aquele aroma? Explicaram-me que o lume, o fumo e o ferro da panela transmitia um sabor que hoje já não há. Hoje ninguém faz sopa em panelas de ferro e muito menos na fogueira.
Quantas matanças aquela panela de ferro ajudou a fazer? Não faço a mínima ideia mas ao olhar para ela, foi como se o tempo não tivesse passado. E eu defraudada sem um génio coberto de fumo azul, como cheguei a pensar. Vou olhando lá para dentro. Pode ser que o génio que ela encerra, acorde.
Um dos meus filhos ficará com ela, mas vai-se perder toda a magia que carrega. Irá ser uma velha panela de ferro e mais nada. Talvez a aproveitem e plantem uma sardinheira. Fica a fazer decoração na varanda.
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