O “Campeão das Províncias” assinala com esta edição 18 anos de publicação em Coimbra. Em breves palavras, a história deste Jornal é simples. Iniciou-se em 1859 em Aveiro, enquanto tribuna e palco de diversos políticos da altura, nomeadamente José Estevão uma das figuras mais marcantes à época que de Aveiro fazia chegar a Lisboa os ecos das suas discordâncias e das suas ambições. Aveiro tinha na altura uma geração política muito activa e muito interventiva.
Atravessando vicissitudes diversas, o “Campeão das Províncias” publicou-se até 1924, durante 65 anos portanto. Em 1998 decidimos, eu e o ISCIA, onde na altura colaborava com alguma actividade docente, decidimos, dizia, editar um Jornal que fosse também a escola prática da passagem dos alunos para a vida real. Dos vários títulos possíveis recuperámos, o do “Campeão da Províncias” por uma razão muito simples: sem sabermos até onde poderia ir o projecto, queríamos um título que nos responsabilizasse e através do qual pudéssemos desempenhar a nossa missão editorial em pleno respeito pelos valores éticos e políticos que haviam feito do Jornal “Campeão das Províncias” um dos mais prestigiados Jornais da altura, com expansão regional mas com respeito e consideração a nível de todo o país. Nitidamente desfasado do tempo no que à forma diz respeito, preferimos todavia vincularmo-nos, através deste título fora do tempo, a um projecto de matriz mais interventiva que informativa.
Quiseram as circunstâncias que nos publicássemos um ano e tal em Aveiro e depois viéssemos para Coimbra onde dispunhamos de outras condições logísticas. E cá estamos e aqui fazemos o nosso melhor, edição após edição, no cumprimento desse compromisso ético que assumimos quando recuperámos o título.
Não somos assumidamente um Jornal cómodo. Muito menos isento de erros. Quem não se acomoda nas cadeiras do poder ou nos sofás do conforto arrisca-se a cometer mais erros, a exceder-se aquém e além, a ver mal as coisas, a errar mais. Mas quem menos erra é quem menos faz. E essa opção, tipo Maria vai com as outras, de pancadinhas nas costas, de dizer que sim a tudo e mais alguma coisa, essa não é a nossa opção editorial. Dissemo-lo logo no primeiro número, que vinhamos para Coimbra com um projecto diferente, não concorrente com os projectos existentes, mas deles complementar.
Coimbra dava na altura claros sinais de facilitismo excessivo nalgumas áreas, de enfraquecimento das suas convicções que dela haviam feito até então, não apenas a terceira cidade do país, mas porventura a cidade mais respeitada do país. Coimbra tinha sido até então uma aspiração para gerações e gerações de jovens e não apenas por causa da sua Universidade, embora também por causa dela. Coimbra tinha uma matriz muito própria. Aquela Praça da República era uma aula em colectivo onde pela primeira vez ouvi falar de figuras mundiais da cultura que nem sabia que existiam. Aqueles cafés circundantes – recordemos o Pigalle – eram autênticas salas de aulas onde os Orlandos de Carvalho de cada geração marcavam camadas sucessivas de estudantes. A Baixa da cidade era a mais activa, pacífica e atraente praça do país onde dar umas passadas de convívio era muitas vezes o único alimento da alma para alguns. Aquele Estádio Municipal era uma porta aberta para o mundo onde a Académica mostrava parte do seu melhor, fosse pela técnica de exímios futebolistas, fosse pelo abrir ou pelo fechar da capa de estudante, gesto silencioso que tanto incomodava os poderes de então. Aquelas vozes do fado, de Menano a Zeca Afonso, de Hilário a Góis e tantos outros, aquele dedilhar de António Portugal a Pinho Brojo, tudo isso era Coimbra e fazia de Coimbra aquilo que ela verdadeiramente era: a capital do nosso sentido colectivo. Ou pensam, os aparecidos mais recentes, que Mário Soares vinha a Coimbra bastas vezes encontrar-se com António Arnaut, com Fernando Vale, Miguel Torga, António Campos e mais tarde Fausto Correia, porque era apreciador dos pastéis de nata da Briosa? Ou pensam ainda que Sá Carneiro acordava Mota Pinto, Barbosa de Melo, Figueiredo Dias, Costa Andrade e outros, a altas horas da madrugada porque queria ir jogar com eles matraquilhos para o Café Moçambique? Pensam mesmo que algum dia o Serviço Nacional de Saúde poderia ser concebido e criado por outra escola do pensamento que não fosse a de António Arnaut e Mário Mendes? Acham que coisas destas se fazem de mãos atrás das costas por políticos medíocres que passam a vida a calcorrear as lambidas tábuas dos corredores do poder?
Essa Coimbra já dava, há 20 anos atrás, claros sinais de definhamento. Parte das elites pensantes envelheceram ou demandaram outras paragens. A excessiva partidarização da vida colectiva castrara o pensamento de gente ousada. As vaidades pessoais e ambições excessivas levaram a que juventude de valor se agachasse nos corredores do Poder Central, preferindo ser chefes de coisa pouca em Lisboa a serem líderes em Coimbra. O Poder Central sugava as elites mais jovens e alguns interesses, nomeadamente no ramo imobiliário, passaram a falar mais grosso, e por exemplo, afectaram a masculinidade da nossa Académica. Cada vez, de entre os que ficaram, eram menos os que se disponibilizavam para a vida pública. Perderam-se algumas elites e apenas no domínio da Saúde não deixámos de ser quem éramos. A própria Universidade deixou enfraquecer alguns cursos e manteve outros mais para segurar Professores do que para preparar alunos.
Coimbra mudou. Coimbra perdeu influência. Coimbra não se soube dar ao respeito e a sua própria consideração regional foi-se esbatendo. Perdeu aquela Académica de outros tempos. Fez da Praça da República uma mera esplanada. Fechou o Pigalle e o Moçambique. Reduziu a Baixa a um espaço que só tem vida 8 horas por dia. Deixou que a sua Queima das Fitas se transformasse numa iniciativa cobaia para as grandes empresas de cerveja. Está longe de cantar o Fado com a alma e o encanto de outros tempos. Não consegue aproveitar o rio. Não tem força para mandar pôr uns tijolos na Estação Velha. Não sabe o que fazer do lindo edifício que é a Estação Nova. Não sabe onde arrumar tanto carro. Não se sabe ouvir, nem ouvir os seus. Não consegue sentar à mesma mesa diferentes correntes do pensamento político e estratégico capazes de encontrar um denominador comum para o seu desenvolvimento futuro. Não consegue disfarçar a vergonha que é o estado de abandono daquela Rua da Sofia. Anda há 50 anos para construir um Palácio da Justiça. Quer construir uma nova Maternidade na Betesga, mas deixa cair aos bocados o antigo Pediátrico e vai fazer o mesmo ao Hospital dos Covões.
Mesmo admitindo que ninguém foge ao seu próprio destino, pensamos que este evoluir menos feliz dos últimos anos não é uma fatalidade. Há-de vir por aí algures uma outra Coimbra, um outro pensamento colectivo, uma outra partilha de ambições, um outro sentido de unidade na defesa do interesse comum. Há-de vir por aí, numa manhã qualquer, com ou sem nevoeiro, uma outra cidade, capital de si própria.
Gostava muito, gostávamos muito, que o “Campeão das Províncias” ajudasse a construir essa Coimbra de amanhã, recuperando a ambição que lhe começa a faltar.
Lino Vinhal | Director do TERRAS DE SICÓ e Campeão das Províncias
[Editorial na edição de aniversário do Campeão das Províncias, 3 Maio/2018]
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