Um livro com propostas para uma nova Lei de Bases da Saúde, redigido em co-autoria com o médico do BE João Semedo, foi o derradeiro contributo do socialista António Arnaut, falecido hoje, para salvar o Serviço Nacional de Saúde.
Antigo ministro dos Assuntos Sociais do II Governo Constitucional, liderado por Mário Soares após a revolução do 25 de Abril, advogado e escritor, António Duarte Arnaut morreu hoje aos 82 anos, nos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC), onde estava internado.
No dia 06 de janeiro, devido à doença oncológica de que padecia há alguns anos, já não esteve na apresentação, em Coimbra, da sua última obra escrita, intitulada “Salvar o SNS – Uma nova Lei de Bases da Saúde para defender a democracia”, concebida em colaboração com João Semedo, ex-coordenador nacional do Bloco de Esquerda, de quem era amigo.
Na sessão, na antiga Igreja do Convento de São Francisco, em que estiveram presentes centenas de pessoas, incluindo os líderes do PS e do BE, António Costa e Catarina Martins, respetivamente, António Arnaut foi representado pelo filho, o também advogado António Manuel Arnaut.
No livro, o socialista e o bloquista defendem a exclusão das parcerias público-privadas do Serviço Nacional de Saúde (SNS), conquista da revolução democrática de 1974 da qual António Arnaut foi o principal impulsionador, tendo empenhado quase metade da vida na sua defesa e aperfeiçoamento.
Há quatro anos, ao ser distinguido pela Universidade de Coimbra (UC) com o grau de doutor “honoris causa”, o advogado e antigo grão-mestre do Grande Oriente Lusitano (GOL) – Maçonaria Portuguesa disse que “nem sempre a lei realiza o direito” e assumiu-se como “cidadão comprometido com o povo e a Pátria”.
“Creio que foi esta rebeldia e também a minha intervenção cívico-social – para ajudar, embora modestamente, a construir uma sociedade mais livre, justa e solidária – que justificaram a alta distinção que me vai ser conferida”, afirmou na ocasião, antes de receber as insígnias doutorais.
Na cerimónia, teve como apresentante Constantino Sakellarides, professor da Escola Nacional de Saúde Pública, enquanto o elogio do candidato coube a José Manuel Pureza, catedrático da Faculdade de Economia de Coimbra, atual deputado do BE e vice-presidente da Assembleia da República.
Na obra “Salvar o SNS – Uma nova Lei de Bases da Saúde para defender a democracia”, Arnaut, presidente honorário do PS desde 2016, e Semedo propõem que o SNS deve apostar nas carreiras dos profissionais de saúde e na eliminação das taxas moderadoras.
Defendem ainda o regresso do Serviço Nacional de Saúde à gestão da administração pública, o respeito pelos contratos e direitos laborais, a reforma dos modelos de organização, funcionamento e articulação das unidades de saúde públicas e destas com a comunidade.
A redação do prefácio coube a Januário Torgal Ferreira, bispo católico emérito das Forças Armadas.
Militante socialista número 4, António Arnaut esteve na fundação do PS, na antiga Alemanha Federal, em 1973, um ano antes do derrube da ditadura fascista em Portugal, tendo assumido o trabalho de relator do congresso.
Entre outras distinções, muitas das quais concedidas por diferentes entidades nos últimos anos, foi agraciado com o grau de Grande-Oficial da Ordem da Liberdade e com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.
António Arnaut foi presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Penela, após o 25 de Abril, e ainda deputado e ministro dos Assuntos Sociais.
De 2002 a 2005, exerceu um mandato como grão-mestre do GOL, alguns anos após ter presidido ao Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados.
Publicou mais de 30 livros, alguns na área jurídica, mas também sobre a Maçonaria e sobre o escritor Miguel Torga, seu amigo, além de ensaios diversos, poesia e prosa. Estreou-se muito jovem na poesia, há 64 anos.
Como advogado, já tinha abandonado há décadas a barra dos tribunais e a política ativa, à qual prometeu não regressar.
Em 2007, em entrevista à agência Lusa a propósito da publicação do seu livro “Rio de Sombras”, declarou que preferia terminar um dia a vida pública como escritor.
Trata-se de um romance histórico em que o cofundador do PS questiona em que medida a ação político-partidária será ainda “compatível com a lisura de caráter” e com a ética.
Num registo que recusou ser autobiográfico, pergunta o autor: “Há ainda na política lugar para a ética, como queria Hegel, ou apenas para a astúcia, como ensinou Maquiavel? E, se for este o caso, como parece pelo número cada vez maior dos seus discípulos, devem as pessoas sérias afastar-se da vida partidária, como ato de protesto, ou afrontar as labaredas em que se podem queimar?”.
“Sou essencialmente um intelectual. Estou mais virado para as coisas do espírito”, afirmou na altura à Lusa.
Ainda ligado, mas pouco, à sociedade de advogados de Coimbra que ajudou a erguer, a que pertence o filho António Manuel, na prática já não exercia advocacia, actividade que o consagrou como eloquente referência dos palcos da Justiça.
Também a política, na qual se iniciou como opositor à ditadura de Salazar, e o PS já não o entusiasmavam como outrora.
“A primeira coisa que fiz na vida foi escrever poesia e hei de morrer como escritor. A vida política não me permitiu publicar mais”, lamentou também.
Ganhou o gosto pela literatura, ainda criança, quando o avô materno, António Freire “Moço”, proprietário rural e “excelente contador de histórias”, lhe facultava alguns dos autores clássicos portugueses.
Na casa de António “Moço”, na aldeia natal da Cumieira, concelho de Penela, distrito de Coimbra, o pequeno Arnaut começou por ler as obras completas de Camilo Castelo Branco e Guerra Junqueiro, que um parente tinha trazido do Brasil.
No livro de ficção “Rude Tempo, Rude Gente”, publicado em 1985, dedica um post-scriptum ao seu avô. António Arnaut via a poesia como “a linguagem autêntica do belo”.
Entendia que entre a poesia e o conto, géneros literários que marcam a sua obra, “há uma parede meeira”, que separa e une dois vizinhos, como aquelas que dividem inúmeros prédios, urbanos e rústicos, realidade que bem conheceu nas andanças de advogado.
Com Torga, que morreu em Coimbra, em 1995, além da amizade tinha “muitas afinidades políticas e literárias”.
Entusiasta há vários anos de uma solução governativa que aproximasse o PCP e o BE ao Partido Socialista (como veio a verificar-se em finais de 2015 com a formação do actual executivo de António Costa), António Arnaut, quando José Sócrates se desfilou do PS, no início deste mês, afirmou que o antigo primeiro-ministro, principal arguido do processo Operação Marquês, já se devia ter desvinculado do partido há mais tempo.
LUSA
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