Encontrámo-nos por acaso. Gosto de sol e ver pessoas. Sentei-me na esplanada de um café e fiquei a brincar com a colher envolta em pensamentos, fazendo gatafunhos na espuma que ficara presa na borda de dentro da chávena.
Atrás de mim uma voz conhecida. Levantei a cabeça.
– Xiiiiiii! Há quantos anos!
– Apareces pouco por aqui, disse ela.
Na verdade a cidade não me atrai muito. Só lá vou quando não encontro na vila o que quero.
Sentou-se à minha frente e ficámos à conversa. Perdemos a noção do tempo. O que nós recordámos. Parecíamos duas miúdas do liceu.
Falámos de quando um grupo de amigos, dos quais já não recordo o nome, fizeram um foguetão, com pólvora e um tubo de ensaio. Santa ingenuidade! Aquela geringonça apenas explodiu e deixou-os cheios de fumo. E não subiu como eles queriam.
Rimo-nos a “ bandeiras despregadas” quando uma de nós se lembrou do Skoda do professor Manuel Vieira, acabadinho de comprar, e para o arreliar os rapazes levaram o carrinho em peso para o lado de trás do ginásio. Quando deu por falta dele andava no corredor, de mãos nos bolsos a balbuciar: Ai o meu Skoda! Ai o meu Skoda!
E quando uma de nós colocou uma sardanisca debaixo do cinzeiro na secretária do professor, quando estes ainda fumavam nas aulas.
As recordações estenderam-se por algum tempo. Parecia que nos nasciam no pensamento, enquanto íamos falando.
Logo quando nos encontrámos vi que o gorro escondia uma cabeça sem cabelo, mas não toquei no assunto.
Foi ela que, num repente falou:
– Já viste que uso um gorro? Gostas da cor?
– Sim, gosto, disse sem grande vontade de continuar.
– Pois é. Há uns meses a tomar banho encontrei um pequeno nódulo no peito. Fui ao médico que desvalorizou, mas mandou-me fazer uma ecografia.
Disse-me disse que “ aquilo” não era bom. Precisava tratamento.
Em casa fui novamente ver a ecografia. Lá estava o nódulo. Encostei-me à parede. Tudo rodou à minha volta. O tecto e o telhado desabaram- me em cima. Um turbilhão de ideias formaram-se dentro da minha cabeça.
Aturdida fiquei calada. Não tinha nada para dizer.
Mas ela continuou:
– Sabes que o que mais custa é a picada da quimioterapia. Os vómitos. As dores de cabeça. Tudo à minha volta anda à roda. Há noites que não durmo. Sabes, o cancro não tem rosto. Aparece com “pezinhos de lã” e não avisa.
O que mais me custou foi quando na banheira caiu um caracol do meu cabelo. Um daqueles caracóis com que vocês gozavam chamando-me de caracoleta. Depois do primeiro os outros vieram atrás como empurrados por mão invisível. Colados à toalha com que limpei a cabeça, emaranhados num grande novelo. Sentei-me no banquinho e chorei com a cara encostada aos meus caracóis castanhos.
O Tiago e o Romeu perguntam muitas vezes se tenho dores. Eu vou dizendo que tudo se suporta.
O Tiago, o marido, no trabalho, vai andando sempre com o telemóvel por perto.
O Romeu, as notas na escola, vieram por aí abaixo, embora seja ainda muito novo e não tenha a perfeita consciência da doença da mãe, que vai andando com sorriso nos lábios. Sorriso amarelo, como se costuma dizer, mas mantém o sorriso.
Nem demos pelas horas a passar. Já as luzes da rua piscavam quando nos despedimos com um longo abraço. Quando nos voltaríamos a encontrar?
Cada uma seguiu o caminho rumo a casa. A família estaria à espera.
Entretanto pensei: Se fosse comigo não seria capaz de enfrentar um cancro e ainda sorrir.
Ontem recebi um telefonema. O telefone tocou e toda eu estremeci, num arrepio incontrolável. Era o Tiago.
Hoje fui ao funeral da minha amiga. Também não resistiu. Levei um pequeno ramo de rosas com um bilhete no meio bem encostado a um botão.
– Amiga! Eu nunca seria capaz de suportar o que suportaste. Até um dia!
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