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NATÉRCIA MARTINS

O velho solar

6 de Fevereiro 2018

Um solar é uma casa enorme com grandes janelas e grandes salões. Imagino que assim seja. Nunca lá entrei, mas costumo passar na estrada onde há um. Tem o brasão de pedra, no alto, por cima da porta da entrada.

Hoje está semi-abandonado embora os donos o visitem de vez em quando. Visita rápida porque as vidas profissionais são na cidade grande.

Imagino-me lá dentro a dançar ao ritmo de uma orquestra. O salão grande iluminado por enormes candeeiros com o mestre-de-cerimónias a dar as suas ordens. As senhoras vestidas com saias compridas e blusas de renda Os homens a transpirar dentro das casacas com abas de grilo e camisas de colarinho engomado. Noite dentro serve-se um chá e bolinhos feitos na cozinha pelas criadas de farda branca e crista de renda na cabeça.

Os quartos de dormir com camas forradas de veludo e dossel de tule branco.

Lá dentro a azáfama de criados e criadas a atravessar os corredores com baixelas de prata na mão a fim de servir os convidados. Ouvem-se as gargalhadas das pessoas abafadas pelo som da orquestra que toca valsas, tangos e ritmos variados pela mistura de novas músicas. Seria assim a vida lá dentro? Outros tempos!

Aquele solar meio abandonado agora não tem vida. O brasão por cima da porta coberto com um pano preto, indica luto pela morte do proprietário. Afinal as pessoas foram embora, os criados já lá não vivem e da orquestra resta um piano de cauda, velho a um canto do salão.

Uma pena! Nos quartos de dormir ainda ficaram as camas mas o dossel foi substituído por teias de aranha. Os ratos tomaram conta da casa. As tábuas do chão outrora encerado apresentam-se baças e sem brilho. As pratas e os linhos que compunham os armários e arcas também já lá não estão. Mas o pano preto que cobre o brasão deu ao solar um cunho de assombrado. Dizem os vizinhos que de noite se ouvem passos a vaguear pelas salas vazias.

Na aldeia a imaginação é fértil em casos de assombração. Este não foge à regra. Tem almas penadas, correntes a fazer barulho e gargalhadas como que a gozar com quem se atrever a incomodá-los.

O meu vizinho é pedreiro e uma imaginação fértil nestes casos de almas penadas.

Um dia os donos do solar pediram-lhe que fosse ao telhado porque uma telha fora do sítio deixava cair umas “ beiras” que degradavam ainda mais o chão já por si muito velho.

O homem lá foi. Saiu do trabalho na obra de todos os dias e ao anoitecer subiu ao telhado. Colocou a telha no lugar, fez mais uns pequenos arranjos numas outras telhas e saiu pelo jardim passando pelo portão onde já as roseiras deitavam os ramos por cima do caminho. Fez-se noite entretanto.

Ao atravessar o jardim ouviu o piano tocar notas desafinadas. Quem seria o músico?

Claro! Almas do outro mundo! Correu para a saída enquanto uma mão invisível lhe arrancou a boina que trazia na cabeça. Pegou na bicicleta e correu para casa. O piano dentro lá dentro a tocar sozinho e ainda lhe arrancaram a boina…

No outro dia o pai, moleiro de profissão, passou pela aldeia a fim de deixar uns sacos de farinha e quando avistou o filho perguntou o que fazia a boina pendurada na roseira do solar.

O meu vizinho espantado olhou para a boina na mão do pai e pensou que afinal quem lha tinha tirado não foi mais que a roseira. Não levantou a cabeça o suficiente para lhe passar por baixo. Então e o piano? Como tocava sozinho? Hummmm! Tinha que indagar. Esperou pela noite, porque as almas só andam de noite, e foi até ao solar.

Entrou pela cozinha e dirigiu-se ao salão. Precisava tirar as “ coisas a limpo”. Nem era medroso e quem quer que fosse tinha que se mostrar. Sentou-se muito quietinho num banco e esperou. O piano começou a tocar mais desafinado. Abeirou-se e ninguém.

Com cuidado levantou a tampa do teclado. Ninguém, mas uma ratazana saiu de lá a correr fazendo uma escala quase perfeita no velho piano de cauda que outrora servira para abrilhantar os bailes. O meu vizinho verificou que afinal os “ fantasmas” existem e de que maneira!


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